Conflitos aparentes entre enunciados normativos tributários de diferente hierarquia vertical sob a perspectiva da estrutura circular do sistema de fontes do direito

AutorTiago José Agostini
CargoEspecialista em Direito Tributário pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Advogado
Páginas211-226

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1. Introdução

O tema a ser tratado nesta pesquisa refere-se às relações de validade material entre normas tributárias de diferentes graus hierárquicos verticais no sistema de fontes do direito.

Especificamente, busca-se investigar sobre a validade material, no ramo do direito tributário, de enunciados normativos inferiores que interpretam os textos legais superiores que lhes dão fundamento de validade, mas acabam criando novas normas não previstas no enunciado normativo superior, que, na maioria das vezes, seria a única fonte de direito competente para instituir regra de conduta sobre determinado ato.

O tema será investigado sob uma perspectiva semiótica, com base na estrutura circular do sistema do ordenamento jurídico proposta por Ferraz Jr. (2003b), ou da estrutura hierárquica entrelaçada referida por Neves (2007), fazendo-se o contraponto com a estrutura piramidal proposta por Kelsen (2003).

Dessa forma, propõe-se a seguinte pergunta-problema:

Tendo-se como base a estrutura circular do sistema do ordenamento jurídico proposta por Ferraz Jr. (2003b) e a estrutura hierárquica entrelaçada proposta por Neves (2007), o sistema jurídico tem conseguido resolver, no ramo do direito tributário, os conflitos normativos em que o

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texto legal hierarquicamente inferior interpreta ou tenta interpretar o texto superior?

Esta pesquisa justifica-se pela elevada ocorrência de problemas concretos na esfera tributária envolvendo suposta antinomia aparente entre fontes de direito inferiores/regulamentares (decretos, portarias, instruções normativas, resoluções, atos de-claratórios, atos interpretativos, etc.) e superiores (texto constitucional ou legal), sendo, portanto, de grande relevância prática. O objetivo proposto é contribuir para o aprimoramento da consistência do sistema jurídico, em especial o tributário.

Em grande parte destes problemas, os textos inferiores, ao menos em princípio, são editados para regulamentar ou detalhar o texto superior, mais geral e abstrato. Todavia, dada a natural ambiguidade presente na linguagem jurídica, tais textos regulamentares interpretativos, aparentemente, acabam criando nova regra de conduta não prevista na norma superior. Desta situação surgem diferentes posições, que podem ser resumidas nas seguintes: a) o texto não criou norma nova, apenas interpretou o superior, explicitando seu conteúdo; b) o enunciado criou nova norma, que não seria competente para tanto.

Os parâmetros tradicionais para a resolução deste problema têm sido o entendimento do sistema de fontes do ordenamento jurídico em uma estrutura piramidal, da forma como proposta por Kelsen (2003), e o princípio da legalidade. Sob tal estrutura, em linhas gerais, discute-se no caso concreto se a norma inferior possui ou não fundamento de validade na norma superior e se aquela ofendeu ou não o enunciado do princípio da legalidade.

Todavia, com base em soluções judiciais dadas para os embates do gênero, entende-se que estes não devem ser os únicos parâmetros para a análise destas situações problemas.

Nesse sentido, propõe-se considerar o ordenamento jurídico como um sistema em estrutura circular, da forma como proposta por Ferraz Jr. (2003b), ou sob uma hierar-quia entrelaçada, como refere Neves (2007), e não somente como uma estrutura de pirâmide com uma (única) unidade, para colaborar na solução de tais situações.

Sem se pretender um enquadramento tipológico puro e rigoroso aos métodos tradicionais, a pesquisa será realizada através de análise bibliográfica e jurisprudencial, sob um olhar crítico.

2. Estruturas do sistema de fontes do direito sob uma perspectiva semiótica
2. 1 Noção sobre a Semiótica

Diversas perspectivas do estudo da teoria geral do direito o fazem com base na semiótica, a teoria dos signos linguísticos, que será uma das premissas para o contraponto das estruturas do sistema de fontes.

Em linhas gerais, a semiótica concebe o Direito como comunicação e analisa os signos linguísticos sobre três prismas: o sintático, o semântico, e o pragmático.

A relação entre os signos é denominada de sintática e, no plano jurídico implica na análise da relação das normas entre si, de forma a se verificar a compatibilidade e/ou coordenação entre elas (Ferraz Jr., 2003b).

A relação de um signo com um objeto ou situação objetiva normada (normas com fatos) é uma relação semântica. Busca-se aqui referência à situação objetiva disciplinada pela norma (Ferraz Jr., 2003b).

A relação entre a norma e os valores e fins que a subjazem é entendida como pragmática (interação da norma com finalidades e com valores). Fala-se então da relação que existe entre um signo e outro signo idêntico, levando-se em conta o cometimento ou o modo como se expressa (Ferraz Jr., 2003b).

Enfim, esta divisão semiótica remonta à distinção entre signo (sintática), objeto (semântica) e interpretante (pragmática) (Neves, 2007, p. 86).

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2. 2 O sistema de fontes de direito e suas estruturas

O estudo das relações entre as diversas normas jurídicas é tão importante quanto o estudo da própria norma jurídica. Segundo Ferraz Jr. (2003b), "a validade da norma não é uma qualidade intrínseca" (Ferraz Jr., 2003b, p. 175), mas depende do contexto, de sua relação com as demais normas, do ordenamento na qual está inserida.

Considerando-se a enorme gama de normas jurídicas, seja no modelo legislado, costumeiro ou jurisdicional, chamadas de fontes de direito, e a diversidade de centros emanadores de tais normas, vem se tentando organizá-las de forma sistemática.

Para melhor compreensão do sistema de fontes do direito, é importante mencionar a distinção entre estrutura e repertório (Ferraz Jr., 2003b); sendo este o conjunto de elementos normativos e não normativos (critérios de classificação, definições, preâmbulos, exposições oficiais de motivos, etc.), enquanto aquele seria um conjunto de regras que determinam as relações entre os elementos (Ferraz Jr., 2003b).

A estrutura e o repertório compõem o ordenamento, que possui caráter de sistema, permitindo a integração das normas num conjunto e possibilitando a identificação das normas jurídicas como válidas. A ideia de sistema permite que sejam traçados mecanismos que permitam a identificação acerca da validade ou não de uma determinada norma (Ferraz Jr., 2003b).

O sistema de fontes pode possuir diversas estruturas. Não se constitui como objetivo deste trabalho efetuar uma descrição exaustiva de todos os modelos e estruturas já desenvolvidas. Interessa à presente pesquisa tão somente o contraponto entre o sistema tradicionalmente aplicado de hierarquia piramidal de normas com o sistema de hierarquia entrelaçada ou circular, especificamente na situação em que uma norma define o conteúdo de termos relevantes da outra.

2.2. 1 A estrutura hierárquica escalonada e piramidal

A mais tradicional e conhecida estrutura do sistema de fontes de direito é a chamada de hierárquica, piramidal ou escalonada. Embora não tenha sido desenvolvida por Kelsen, consolidou-se e tornou-se famosa por meio de sua obra (Vilanova, apud Ascensão, 2001).

Esta estrutura tem dominado o pensamento jurídico desde o fenômeno dapositi-vação do direito e do surgimento da noção de ato jurídico enquanto mecanismo em que o direito é posto por diferentes centros emanadores, cada um com sua força de imposição. Considerando-se tais atos como a única fonte, são agrupados em sistematização hierárquica, cuja principal característica é a relação de subordinação entre superior e inferior (Ferraz Jr., 2003a, p. 65).

Segundo esta estrutura, o fundamento de validade de cada norma é atribuído por outra superior, que atribui competência à autoridade competente para instituir norma inferior, o que Kelsen (2003) denomina de construção escalonada supra-infra-orde-nada. Nas suas próprias palavras, "[u]ma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo, quer dizer, porque o seu conteúdo pode ser deduzido pela vida de um raciocínio lógico do de uma norma fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma determinada - em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com essa norma fundamental" (Kelsen, 2003, p. 221).

No topo do sistema, que é ilustrado como uma pirâmide em que cada norma encontra-se em um degrau, está a norma fundamental, que fundamenta todo o sistema (Kelsen, 2003), cujo enunciado pode ser simplificado sob o título obedeça as demais normas do sistema.

A norma fundamental, concebida como a constituição no sentido lógico-jurí-

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dico, é a fonte comum de validade de todas as outras normas pertencentes a um ordenamento. Ela é pressuposta, pois para que fosse posta precisaria ser emanada por uma autoridade cujo fundamento residira em outra norma (Kelsen, 2003).

Sob a perspectiva semiótica...

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