O Armário Ampliado ? Notas sobre sociabilidade homoerótica na era da internet

AutorRichard Miskolci
Páginas171-190
Niterói, v. 9, n. 2, p. 171-190, 1. sem. 2009 171
O ARMÁRIO AMPLIADO – NOTAS
SOBRE SOCIABILIDADE
HOMOERÓTICA NA ERA DA INTERNET1
Richard Miskolci
Universidade Federal de São Carlos
E-mail: ufscar7@gmail.com
Resumo: Este artigo analisa os resultados
preliminares de uma incursão etnográfica
em salas de bate-papo gay voltadas para o
público masculino de São Paulo, buscando
compreender a sociabilidade homoerótica
na era da internet. Explora como os usuários
articulam o uso de plataformas da rede (bate-
-papo, sites de relacionamento, de anúncios
de busca de parceiros e Messenger) para a
criação de contatos pessoais face a face, os
quais se constituem pelas mesmas caracterís-
ticas que os originam on-line: possibilidade
de acesso individualizado e secreto. Por fim,
busca compreender alguns dos dilemas e das
promessas da rede na criação de relações de
amizade, amorosas e sexuais impensáveis para
gerações anteriores.
Palavras-chave: sexualidade; internet; se-
gredo; meio; armário; teoria Queer.
Segundo Eve Kosofsky Sedgwick (2007), o armário é um regime de controle
da sexualidade que rege e mantém a divisão binária hetero-homo da sociedade oci-
dental desde fins do século XIX. Ele se caracteriza por um conjunto de normas nem
sempre explícitas, mas rigidamente instituídas que faz do espaço público sinônimo
de heterossexualidade, relegando ao privado as relações entre pessoas do mesmo
sexo. Em suas palavras,
Ao final do século XIX, quando virou voz corrente – tão óbvio para a Rainha Vitória como
para Freud – que conhecimento significa conhecimento sexual e segredos, segredos sexuais,
o efeito gradualmente reificante dessa recusa significou que se havia desenvolvido, de fato,
uma sexualidade particular, distintamente constituída como segredo. (2007, p. 30)
1 A versão final deste artigo foi enriquecida pela leitura crítica e as sugestões de Larissa Pelúcio, Oswaldo Lara, Guilherme
Cristofani e de alguns de meus colaboradores na pesquisa. Agradeço também aos pareceristas da Gênero por suas
leituras criteriosas.
172 Niterói, v. 9, n. 2, p. 171-190, 1. sem. 2009
O armário ampliado – Notas sobre
sociabilidade homoerótica na era da internet
A homossexualidade foi “inventada” como segredo e – em contextos culturais e
históricos que a perseguem – tende a existir inserindo no armário aqueles que nutrem
interesses por pessoas do mesmo sexo. Portanto, o closet não é uma escolha indi-
vidual, e a decisão de sair dele tampouco depende da “coragem” ou “capacidade”
individual. Em contextos heterossexistas, “assumir-se” pode significar a expulsão de
casa, a perda do emprego ou, em casos extremos, até a morte. Por isso, historica-
mente, a maioria de homens e mulheres que se interessavam por pessoas do mesmo
sexo viveu em segredo, o que lhes legava uma sensação de serem únicos e viver o
fardo de um desejo secreto sem ter com quem compartilhar temores e sofrimentos.2
No presente, indivíduos “no armário” se deparam com um cenário distinto
graças à internet. A possibilidade de estabelecer contato sem exposição alçou a rede
a um papel central na vida de boa parte destes sujeitos, a ponto de muitos nem
conseguirem se imaginar “desconectados”. 3 A era da internet parece tê-los libertado
da maioria das restrições do armário, hipótese que resolvi testar por meio de uma
incursão etnográfica nas salas de bate-papo gay voltadas para o público masculino
de São Paulo e do Rio de Janeiro. Logo fui obrigado a priorizar as salas paulistanas
por conhecer melhor a geografia “real” da cidade, as gírias e demais componentes de
uma sociabilidade on-line intrinsecamente associada à off-line. Além da necessidade
da delimitação geográfica tradicional para compreender o uso do chat, deparei-me
com o fato de que seus usuários associam a ele outras plataformas. É por isso que,
neste artigo, esboço reflexões sobre a constituição de relações entre homens por
meio da internet com o uso das principais plataformas de comunicação no presente:
bate-papos, sítios de relacionamento (como Orkut e Facebook), anúncios de procura
de parceiros amorosos ou sexuais (como Manhunt, Disponivel, Gaydar, Troca-Troca
etc.) e Messenger (programa de troca de mensagens instantâneas muito popular
entre os internautas).4
A incursão etnográfica foi feita entre dezembro de 2007 e junho de 2008 e
seguiu dois procedimentos complementares: um de aproximação pelo conteúdo “ex-
terno” da plataforma (dados possíveis de acessar sem interação com os usuários), e o
segundo foi o de “imersão” no campo. Primeiro busquei entrar nas salas várias vezes
ao dia para contabilizar o número de usuários, reconhecer e registrar os apelidos mais
2 Sobre este tipo particular de solidão, consulte Foucault e Sennett (1981).
3 Segundo o IBOPE, em maio de 2008, 41,5 milhões de pessoas tinham acesso à internet no Brasil. Destas, 35,5 aces-
savam de suas residências, mas um número expressivo de 6 milhões a acessava por uma vasta rede de lan-houses ou
cyber-cafés espalhada por todo o país. Durante minha etnografia, entrei em contato com homens de bairros perifé-
ricos e pobres de São Paulo, os quais teclavam destes locais. O acesso via rádio ou com a tecnologia 3G conecta até
pessoas em trânsito ou que vivem na zona rural.
4 Sobre as particularidades do Orkut, consulte Dornelles (2004) e Parreiras (2007). No que toca ao Messenger, trata-se
de uma plataforma auxiliar independente. Muitos usuários a utilizam para manter contato com amigos e familiares,
troca de arquivos (especialmente fotos) de forma imediata e videoconferência com o uso de uma câmera conectada
(ou embutida) no computador. Na história da internet, este tipo de programa de troca de mensagens (ou contato por
voz) tem evoluído e criado verdadeiras “épocas” como a do IRC, MIRC, ICQ até chegar aos Messenger e Skype, os mais
populares hoje em dia, mas cuja dinâmica de inovação constante da rede pode tornar obsoletos e substituir.

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