As desigualdades impertinentes: telhado, paredes ou céu de chumbo?

AutorPaola Cappelin
Páginas89-126
Niterói, v. 9, n. 1, p. 89-126, 2. sem. 2008 89
AS DESIGUALDADES
IMPERTINENTES: TELHADO,
PAREDES OU CÉU DE CHUMBO?
Paola Cappellin1
Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: cappellin@uol.com.br
Resumo: O artigo oferece uma análise compa-
rativa das posições ocupadas pelas mulheres
nas profissões de alta hierarquia nas empresas
(diretoras e gerentes), avaliando as mudanças
registradas nas estatísticas do Ministério do
Trabalho entre 19 96 e 2006. As mulheres
têm aumentado sua educação, a presença na
economia e na sociedade. Mas estas mudanças
não incluem um expressivo aumento de sua
integração nos altos espaços de tomada de
decisão nas empresas. Por exemplo, a maioria
das mulheres nas organizações está em postos
de comando em empresas do setor de servi-
ços, educação, saúde, mas não é usual sua
presença e promoção no setor de finanças,
seguros e bancos. O telhado de vidro, metá-
fora criada nos anos 1990, é hoje enriquecido
pela referência às par edes de vidro, como
demonstração dos contínuos limites que se
opõem a sua carreira.
Palavras -chave: telhado de vidro; paredes
de vidro; mulheres no mercado de trabalho;
mulheres e organizações.
Introdução
Os índices estatísticos nacionais relativos à década 1996-2006 mostram que, na
virada para o século XXI, ocorreu uma consistente ampliação na abertura do emprego
para as mulheres.2 Neste texto, queremos contextualizar as diferenças de sexo no mer-
cado de trabalho nesta década, marcada por fases diversas: a estabilização do afluxo
das mulheres ao mercado de trabalho nos anos 1980; o abalo nas modalidades de
1 Artigo da pesquisa ”A expansão da igualdade de oportunidades no território: Trabalho e direitos numa perspectiva de
gênero”. Projeto UFRJ / CNPQ 2008-2010. Agradecemos a Igor Mello Diniz (CNPq) e Marina Cortez (UFRJ/PIBIC), que,
sob nossa coordenação, ofereceram seus relatórios de pesquisa. Agradecemos também a Paula Menezes (doutoranda
do PPGSA /UFRJ) por ter construído e formatado tabelas e gráficos do banco de dados RAIS/ MTE de 1996 a 2006.
2 PNAD (1996-2006) e RAIS - Relação Anual de Informações Sociais, 1996-2006.
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As desigualdades impertinentes: telhado, paredes ou céu de chumbo?
contratação entre 1998 e 2003 e a sua recuperação de 2004 a 2006. Estas diferentes
conjunturas respondem, em grande parte, às injunções das dinâmicas econômicas.
Entretanto, seu contexto é também dinamizado pelas iniciativas, às vezes pioneiras,
das instâncias jurídicas e políticas, que levam à implementação de novas políticas
afirmativas a favor da equidade de gênero no mercado de trabalho.
Desde 1980, a literatura concentra sua atenção na configuração bipolar do
mercado de trabalho feminino, enfatizando os lugares e as condições de não qualifi-
cação, por um lado, e os de alta formação, por outro. Uma primeira imagem mostra
as novidades de um processo virtuoso que, desde 1990, ocorre no trabalho de alto
perfil ocupacional: nesta década, as jovens mulheres superam os homens na obten-
ção do diploma universitário, até que, em 2006, a geração de empregos que exigem
grau de instrução superior completo atinge em maior parte as mulheres (164,9 mil
para elas e 73,4 mil para os homens) (RAIS, 2006).
É interessante observar que este avanço no nível de instrução exigido pelos
novos postos de trabalho não leva a um correspondente avanço na remuneração.
Observa-se que, em 2006, o rendimento médio da mulher apresenta uma elevação
gradativa quando comparado ao rendimento percebido pelos homens. Com efeito,
se em 2004 o rendimento médio da mulher correspondia a 81,2% daquele dos ho-
mens, em 2005, eleva-se para 82,1%, e, em 2006, é de 83,2%. Todavia, os relatórios
nacionais do Ministério do Trabalho e Emprego (RAIS, 2006) mostram que a média
dos salários das trabalhadoras com diploma universitário corresponde a 56,5% do
salário dos homens com mesmo nível de instrução.
Estes índices tão diferenciados nos levam a repensar a incorporação das mulheres
inseridas no polo de alta qualificação profissional, considerando que tal fenômeno
apresenta intensos contrastes entre luzes e sombras. A literatura internacional vem
alertando sobre a contínua reprodução das fortes assimetrias entre o fenômeno da
expansão da formação universitária, majoritariamente feminina, e a predominância
hierárquica dos homens nos postos mais altos e mais bem remunerados das orga-
nizações. Fala-se a respeito de um novo paradoxo, da vitalidade das “desigualdades
impertinentes” (MARUANI; HIRATA, 2003). Assim, as tradicionais modalidades que
segmentam por sexo os espaços ocupacionais e as atribuições profissionais não só
resistem a se dissolver, mas renovam as formas de sua persistência.
Enquanto nos adentrávamos nas conclusões deste artigo, nos EUA o presiden-
te B. Obama assinava a “lei Lilly Ledbetter”, que estabelece novas diretrizes para as
queixas sobre casos de discriminação salarial. Este fato não é uma simples ilustração
de quanto as assimetrias de sexo estão arraigadas no mercado de trabalho, mas é
um caso emblemático que torna obrigatório evidenciar os elos visíveis e invisíveis que
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Paola Cappellin
nas sociedades contemporâneas ligam as relações sociais de sexo às práticas, não só
econômicas, mas também jurídicas, políticas e culturais.
“Mobilizar a memória para
tentar compreender o presente”3
Para saber quanto é impertinente a segregação vertical e horizontal dos luga-
res designados às trabalhadoras com alta formação, uma pergunta abre a análise
contemporânea: qual legado nos oferece a história do trabalho feminino? A busca
de reconhecimento individual por meio da ascensão profissional esteve em conflito
com as pressões e exigências de reprodução familiar. A perspectiva de carreira é bas-
tante recente no ideário feminino, e, por certo, não é fruto de exclusivas dificuldades
pessoais e/ou psicológicas das pessoas.
As características da bipolaridade (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000), entendida
pela contrastante ocupação de nichos heterogêneos (atividades de baixa qualidade
ao lado daquelas de nível universitário), emergem quando a produção sociológica
abandona a análise do trabalho feminino dinamizado exclusivamente pelas necessi-
dades de complementar o orçamento familiar. Durante muito tempo se restringiu,
se naturalizou o papel da mulher pela via das responsabilidades de sobrevivência
do núcleo doméstico/familiar. Para Elisabeth Souza-Lobo (1991), as mudanças são
palpáveis quando, a partir da década de 1980, cruza-se a divisão sexual do trabalho
e “gênero”. No vocabulário sociológico, a questão das assimetrias decorre, assim,
de práticas econômicas lidas pelo rico arquivo de relações sociais e culturais entre os
sexos. Também para Joan Scott (1991), este importante avanço se concretizou quan-
do a divisão sexual do trabalho deu “atenção aos sistemas de significados” (SCOTT,
1991). É assim evidenciado quanto as configurações das práticas econômicas são
alimentadas pelos sentidos aportados pelas instituições, pela esfera jurídica e pela
subjetividade das pessoas.
Desvendar o mito da entrada recente das mulheres no trabalho assalariado
passa pela atenção prestada à participação feminina no processo da industrialização
entre 1920 e 1950 (JUNHO PENA, 1981).
3 Castel (1998).

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