As presunções de direito público

AutorFlorence Haret
CargoDoutora pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP. Professora e Pesquisadora do IBET
Páginas74-81

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1. Presunções como proibições fracas no Estado liberal brasileiro

Para pensar as presunções no âmbito do direito público, isto é, naquilo que diz sobre as ações do Estado em sociedade, é preciso, antes, conjecturar sobre a própria formação dos modelos estatais que temos hoje.

Pois bem. Nem é preciso dizer que a figura do Estado é uma criação do homem. Era uma imposição necessária para fins de organizar a vida em coletividade. Sua presença se dá nas mais variadas formas, razão pela qual, ao longo da história, o ser humano foi moldando o papel do Estado em sociedade. De início, existia o estado de natureza em que a esfera do lícito imperava: tudo é permitido para todos. Percebendo que a liberdade exacerbada de uns prejudicava os direitos de outros, entra em campo o estado, em seu sentido entitativo, passando a limitar a ação do homem em benefício do bem-estar social. Contrapondo-se o estado de natureza, no outro extremo encontrava-se o estado totalitário que tornava tudo obrigatório. Aqui, a imperati-vidade se estendia em detrimento da licei-dade: tudo é obrigatório. A repressão ao extremo também não foi bem-sucedida, pois criava situações de desigualdade e insatisfação social. Foi assim que se alcançaram as formações intermediárias do estado civil: (i) o estado liberal em que tudo é permitido, exceto o que é proibido e de onde se tira o princípio ontológico do direito particular ou do domínio civil; e o estado socialista, no qual tudo é proibido, exceto o que é permitido, pensamento ou princípio ontológico do direito do estado ou público. Enquanto no primeiro a liberdade era em função da inexistência de norma (lícito natural), no segundo, estávamos no campo da licitude jurídica, isto é, de onde existia norma que disciplinava o campo do permitido.

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Fato é que o Estado brasileiro tem formação liberal, isto é, estrutura onde se deixa a máxima extensão à esfera da licei-dade em relação àquela da im{peratividade no tocante às atividades do setor privado. Convivem no ordenamento jurídico os princípios ontológicos do direito, em que, para o Estado, tudo é proibido, exceto o que épermitido em lei; e, para os particulares, tudo é permitido, exceto o que é proibido em lei.1 São regras que não se encontram expressamente veiculadas no Texto Maior, mas que traduzem uma experiência histórica na constituição do País. São pressupostos do próprio direito que sustentam o estado liberal brasileiro, e sendo tão somente preconcebidas, sem lei escrita que lhes dê lembrança, são consideradas proibições fracas para a ordem pública, ou permissões fracas para o privado.

Aliás, um passo que se nos apresenta importante nesse caminho é asseverar que esses princípios são eles mesmos definidores dos próprios regimes jurídicos público e privado: o primeiro, resguardando os interesses do Estado; o segundo, os direitos dos particulares. E, para explicar o que seriam estes, servimo-nos das lições de Tercio Sampaio Ferraz Jr.: "(...) o que define se um interesse é público ou privado não é sua repercussão intensa ou secundária sobre a sociedade, mas o regime que o disciplina. Ou seja, da multiplicidade dos valores sociais em jogo, cabe ao legislador decidir, por meio de validação condicional, quais deles serão reputados como manifestando um interesse público".2

Ora, com estas modulações e transportando a ascética jurídica para o campo das presunções, tenho que estas só são admitidas no direito público quando expressamente permitidas em lei, ou melhor, são proibidas, exceto aquelas legalmente permitidas. Em outros termos, os princípios ontológicos do direito público impõem ao Estado nacional vedação fraca no uso das presunções. Não havendo previsão legal, descabe à autoridade administrativa presumir fatos como bem entender para fins de criar direitos e deveres. Tal situação conferiria ao Executivo poderes de cunho legislativo, habilitando-o a atuar em sociedade tal como legislador, instituindo novos preceitos e novas imposições. Assim sendo, o princípio ontológico do direito público da mesma forma que a divisão dos poderes numa república federada impede o uso das presunções pelo Poder Público para criar direitos e deveres novos quando estas não vierem expressamente em lei.

2. Presunções sistêmicas como mecanismos de reforço à prescritividade do direito

Indo além, outra importante reflexão das presunções em âmbito público diz respeito às suas funções sistêmicas. O próprio ordenamento cria determinadas presunções que cumprem relevante papel na manutenção do Estado e na estabilização das relações jurídicas. Maria Rita Ferragut já o mencionara anteriormente, dizendo: "Finalmente, é possível encontrar um número reduzido de presunções criadas não para suprir deficiências probatórias, mas para preservar o interesse público, a estabilidade do sistema e a segurança das relações sociais, tais como as presunções de constituciona-lidade das leis e certeza e liquidez da dívi-

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da inscrita, estas contidas no artigo 204 do Código Tributário Nacional"3 (grifos nossos).

De fato, o regime do direito público se apoia juridicamente em dois pilares: (a) supremacia do interesse público sobre o privado e (b) indisponibilidade dos interesses públicos. É a partir deles que se justificam determinadas presunções que cumprem o papel de preservar o interesse público, a estabilidade do sistema e a segurança das relações sociais. E elas são chamadas das mais variadas formas: presunção de consti-tucionalidade das leis; presunção de validade, de legalidade, de veracidade ou mesmo de legitimidade dos atos jurídicos; presunção de fé pública; presunção de certeza e liquidez da dívida inscrita; entre tantas outras que poderíamos enumerar a título elucidativo. Chamemo-las de presunções sistêmicas para simplificar a ideia de que todas funcionam como meio para assegurar um fim ou que exprimem seu valor: a segurança jurídica, o sistema do direito, o interesse público, etc. E é novamente em Ter-cio Sampaio Ferraz Jr. que buscamos guarida: "Estas consequências exprimem fins, como aproteção assegurada aos interesses públicos, aos quais se ligam meios que lhes são pressupostos, como a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos, benefícios de prazos em dobro, prazos especiais para prescrição de ações, etc."4 (grifos nossos).

Pois bem. Diante desse quadro, aliás corriqueiro nos ordenamentos jurídicos, há necessidade premente de ater-se o exegeta a que tais presunções assegurem a exigibilidade dos atos dos Poderes Executivos ou Legislativos, dando a ele efetiva eficácia social. Cabe ao Judiciário, como guardião da justiça, ponderar num segundo momento, e se contestada por quem de direito, a validade desses tipos presuntivos. Portanto, são regras que funcionam para assegurar a certeza e a segurança jurídica do ato do Executivo ou Legislativo, até que, porventura, seja questionada sua validez e, em nome de um sobrevalor - justiça -, seja declarada pelo Judiciário sua expulsão do sistema.

Entre outros pontos de relevo, convém destacar ainda que milita para o Judiciário a...

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