Poder e liderança: as contribuições de Maquiavel, Gramsci, Hayek e Foucault

AutorMaria Cristina Sanches Amorim, Regina Helena Martins Perez
CargoDoutora em Ciências Sociais. Economista. - Doutora em Ciência Sociais pela PUC/SP. Psicóloga.
Páginas221-243

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Maria Cristina Sanches Amorim 1

Regina Helena Martins Perez 2

1 Introdução

A literatura sobre liderança é constituída principalmente pelas contribuições da psicologia e, em segundo plano, da sociologia (ROBBINS, 2005). Há pouca influência da ciência política e esta, por sua vez, quando utilizada, o é em sentido restrito, pois o poder é considerado apenas na acepção negativa de opressão e conflito. O objetivo do artigo é contribuir para a discussão sobre o tema liderança, à luz da ciência política, tendo como referência os clássicos? da política, Maquiavel, Gramsci, Hayek e Foucault.

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O foco escolhido é a liderança associada ao posicionamento do indivíduo na hierarquia, a chamada liderança formal, ainda que na acepção de Foucault, influenciar pessoas independentemente do cargo também seja uma forma de exercer o poder.

Este artigo nasceu dentro do grupo de pesquisa sobre organizações e sistemas de saúde, constituído por professores, mestrandos, doutorando e alunos de especialização. Em dado momento, foi necessário agregar a pesquisa ao estudo sobre liderança, em virtude da necessidade de compreender, no nível do desempenho das pessoas, as diferenças entre as organizações de saúde. No primeiro estágio da pesquisa, percebeuse a existência de interesses divergentes em todos os elos da cadeia produtiva. No segundo, foram estudadas as relações entre interesses organizados corporativamente e poder, desaguando na análise das ações dos indivíduos como agentes dos blocos de interesse. Para entender as questões colocadas pelo segundo estágio da pesquisa, foi necessário estudar liderança e poder nas organizações ? o artigo resulta dessa reflexão sobre a teoria da liderança e a teoria política.

A produção teórica sobre liderança é ampla (BERGAMINI, 2004), as chamadas escolas?, organizadas em torno de características e papéis são sobejamente conhecidas e, por esse motivo, não se apresenta exaustiva revisão bibliográfica dos títulos e escolas?, mas privilegiase o menos explorado, as contribuições vindas da ciência política.

Enquanto a academia e os pesquisadores têm importantes e pertinentes reticências teóricas, os executivos consomem vorazmente a literatura voltada para o grande público que, muitas vezes, é de qualidade discutível. O discurso hegemônico das revistas de negócio voltadas para o grande público é marcado pelo que se supõe politicamente correto. Nos limites desse artigo, o politicamente correto significa a assunção de discursos esvaziados dos conteúdos originais, utilizados para evitar conflitos com o público, na tentativa de despolitizar os debates. Em outros termos, no lugar da imprescindível discussão sobre ética e moral nas organizações surgem os clichês recomendando condutas quanto aos relacionamentos entre gêneros, às religiões, aos subordinados, às características étnicas e particularmente, quanto ao poder.

Na literatura para o grande público, a despolitização resulta na caracterização do líder ideal como um indivíduo virtuoso, acima do bem e do mal. O estudo da política o convida a repolitizar o debate, sugerindo que se o poder se expressa também por meio da liderança, é conveniente investigar as relações entre o primeiro e a segunda.

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2 Liderança

A psicologia organizacional, pioneira no estudo sobre liderança, deu notáveis contribuições ao debate e, ao mesmo tempo, propiciou abordagens dicotômicas, demarcando a discussão entre a corrente behaviorista e a fenomenológica, sugerindo que uma das correntes é correta e a outra, errada. Bergamini (1994, p. 84), provavelmente a autora nacional mais lida, adverte o leitor sobre as diferenças irreconciliáveis entre as duas correntes, de sorte que [...] não se pode aceitar a ambas correntes ao mesmo tempo para explicar um mesmo tipo de comportamento?. A autora prossegue na demarcação entre os dois campos conceituais ao citar Milhoan e Forisha, autores de

[...] uma obra de divulgação em psicologia, não muito sofisticada, mas escrita dentro de aceitáveis critérios científicos, propõe [...] a diferença entre a visão comportamental e fenomenológica do ser humano: a orientação comportamentalista considera o homem como um organismo passivo, governado pelos estímulos fornecidos pelo meio ambiente; o homem pode ser manipulado, o que significa que seu comportamento pode ser controlado. [...] a corrente fenomenológica considera o homem como fonte de todos os seus atos, [...] é essencialmente livre para fazer escolhas em cada situação (BERGAMINI,1994, p. 85).

Desde as críticas do indutivismo por autores como Popper (1980), Kuhn (2003) e Lakatos (1983), a ciência não mais se arvora em verdade única. As contribuições da teoria do caos, por sua vez, incumbiramse não só de aprofundar as críticas, como de mostrar que, se não há a verdade absoluta, então, a regra passa a ser a complementaridade entre os saberes (PRIGOGINI; STENGERS, 1991). Se concordarmos com os autores da teoria do caos e da complexidade, temos mais um motivo para olhar a liderança por outros enfoques, como por exemplo, o do poder, ancorandonos na teoria política.

Percebese na citação da dupla de autores Milhoan e Forisha (apud BERGAMINI,1994), de sorte repetida exaustivamente na literatura, um evidente julgamento das duas teorias. Dado que na sociedade ocidental, fortemente marcada pela cultura liberal (como se verá adiante, com Hayek), controlar ou ser controlado são categorias negativas, o behaviorismo e tudo que deriva dele, transformouse em condutas pejorativas: arcaicas,

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equivocadas e, até mesmo, perversas. Por isso a literatura sobre liderança ter fundado dois tipos clássicos de executivos. De um lado, o chefe, associado à administração científica no início do Século XX e ao behaviorismo, talhado para gerir processos, de outro, o líder, ligado à corrente da escola de Recursos Humanos e ao comportamentalismo, voltado para funções menos estruturadas (na vertente popular, é o ser carismático, visionário e, principalmente, um exemplo de virtudes a serviço dos interesses do grupo).

Distante da economia e da política, as teorias sobre Recursos Humanos absorveram as contradições estruturais do capitalismo na forma de posicionamento militante, caracterizado pelo dilema quanto ao papel dos estudos sobre comportamento organizacional. Ou se produzia saberes prócapitais, procurando aumentar a produtividade do trabalho, ou se tratava da produção intelectual para a defesa do trabalhador, protegendoo da lógica capitalista da busca pelo lucro crescente.

Com relação a tal debate, as transformações no mundo do trabalho em curso desde os anos de 1980 incumbiramse de solapar a pertinência do dilema. O aumento da precariedade das relações de trabalho, diante da qual o emprego formal é quase um privilégio (DOWBOR, 2002), ou, a ideologia dominante da globalização segundo a qual os benefícios conquistados pelos trabalhadores são resquícios de administração paternalista (TODD, 1999) cumpriram a função de inutilizar o posicionamento dito prótrabalhador?. A popularidade da expressão colaboradores? para designar o que já foi denominado de força de trabalho, trabalhadores ou funcionários evidencia a obsolescência do velho dilema e também a vitória do politicamente correto.

Ao mesmo tempo, na medida em que os trabalhadores foram deixando as funções repetitivas (cada vez mais executadas por máquinas eletrônicas), em prol de tarefas criativas, as organizações foram obrigadas a desenvolver outros instrumentos de controle, muito mais persuasivos do que opressivos. Ou seja, embora a defesa dos interesses do trabalhador tenha se esvaziado como prática e discurso, dada a emergência do trabalhador semântico (DANTAS, 1996), as organizações são levadas a práticas de controle da produtividade que, em algum grau, considere os interesses dos primeiros. O processo de adaptação das formas gerenciais aos trabalhadores do conhecimento é cheio de avanços e retrocessos, contradições e superações. A literatura sobre liderança voltada para o grande público no mundo dos negócios expressa esse processo: trata de refrear o poder do líder sugerindo

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que sirva ao grupo?, ao mesmo tempo em que procura formas politicamente corretas de motivar e controlar os colaboradores?.

A vertente comportamentalista, que influenciou a teoria dos traços, começou a organizar um campo teórico para a pesquisa. Fruto da ciência hegemônica de sua época, o positivismo, utilizou como método as análises de correlação ? e as correlações entre traços do líder e desempenho do grupo não foram significativas. O método de pesquisa utilizado estava marcado pelo apriorismo, velho problema do indutivismo: partiase de uma noção, a priori de líder, para definir liderança. Em grande medida, o apriorismo não foi resolvido também pela corrente fenomenológica, daí a definição problemática do conceito de liderança, aludida anteriormente. Além disso, o método da análise de correlação, típico dos sistemas estruturados, jamais se prestou ao objeto de análise, semiestruturado (MATUS, 1995) ou autopoiético (MATURANA; VARELA, 1997).

A escola das teorias contingenciais trouxe à tona a importância do contexto, da cultura organizacional, do tipo de tarefa e do tipo do grupo para a compreensão do fenômeno da liderança das organizações. Contribuiu também para o fim da crença na existência do líder ideal, cujo padrão possa ser decodificado e replicado. Entre os mais lidos, citase o modelo de Fiedler (ROBBINS, 2005), de Hersey e Blanchard (1986), das trocas entre líder e liderados, e de Robert House (ROBBINS, 2005).

A despeito das divergências entre as origens teóricas das escolas sobre liderança, há um consenso, por exaustão, de que a liderança envolve um quantun de características de personalidade, outro da adequação dessas ao contexto, ao grupo e ao tipo de tarefa. Esse é o motivo pelo qual há...

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