As vias de execução no processo civil brasileiro

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas35-48

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1. Tutelas jurisdicionais

Desde suas origens romanas o processo civil europeu continental, de onde deriva o direito processual brasileiro, proporciona ao direito material, nas situações conflituosas, dois tipos de tutela: uma de acertamento ou definição e outra de realização ou satisfação. A primeira realiza-se por meio de um provimento denominado sentença, no qual o órgão judicial declara a real situação jurídica dos contendores frente ao litígio deduzido em juízo. A segunda conduz a um provimento que atua no plano material, provocando alterações na esfera concreta do patrimônio dos litigantes, por meio de uma atividade denominada execução forçada. O órgão jurisdicional realiza concretamente a prestação que uma parte deveria efetuar em favor da outra. Substituindo o devedor, o juiz utiliza, coativamente, bens de seu patrimônio para proporcionar a satisfação do direito subjetivo do credor.

Ao método usado pelo Poder Judiciário para definir a situação jurídica litigiosa dá-se o nome de processo de conhecimento; e ao utilizado para satisfação forçada da obrigação inadimplida pelo devedor, atribui-se a denominação de processo de execução.

A instauração do processo, tanto de conhecimento como de execução, é provocada pela parte interessada por meio do exercício do direito de ação - direito à prestação jurisdicional - que se especializa em ação cognitiva, quando se busca a sentença, e ação executiva, quando são os atos de satisfação material o que se pretende da jurisdição.

A história da ação executiva confunde-se com a do próprio processo e tem passado por muitas vicissitudes ao longo da evolução do direito que se costuma apelidar de instrumental. É o que abordaremos no item seguinte.

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2. Breve histórico da ação executiva

No primeiro estágio do direito romano, dito período clássico, o processo era desenvolvido em dois momentos distintos: iniciava-se perante o praetor e se completava perante o judex. O praetor era um magistrado, agente estatal que detinha o imperium e que se encarregava dos negócios da Justiça. Não julgava, entretanto, os conflitos que lhe eram submetidos por meio das actiones. Ouvidas as partes, nomeava- -se um jurista, que assumia a função de judex, cujo desempenho culminava com a sententia. Ao contrário do praetor, o judex não era um agente estatal permanente, era um particular a que, no caso concreto, se confiava a tarefa de julgar. O sistema era, portanto, arbitral, com nítida feição negocial. Considerava-se a litis contestatio como o compromisso assumido pelos litigantes, em face do praetor, de submeterem-se àquilo que fosse decidido pelo judex.

Como o judex não detinha o imperium, mas apenas o judicium, não tinha poder para fazer cumprir sua sentença. Se o vencido deixava de cumpri-la voluntariamente, o vencedor teria de voltar ao detentor do imperium para poder empregar a força na realização do comando sentencial. Para tanto, teria de propor uma nova actio, que se denominava actio iudicati. Esse sistema, intitulado ordo iudiciorum privatorum, exigia por sua estrutura negocial e arbitral, essa dualidade de ações para alcançar-se a efetiva satisfação do direito subjetivo violado: uma ação para acertar a existência do direito da parte, que se encerrava pelo pronunciamento do judex; e outra ação quando eventualmente o vencido não cuidasse de cumprir a prestação que lhe impusera a sententia.

É bom lembrar que nos primórdios do direito romano não havia um poder judiciário organizado de forma autônoma diante dos outros poderes estatais. O praetor não julgava e o judex sentenciava, mas não tinha poderes executivos. Daí o recurso ao processo dual em que a actio se realizava por ato, puramente declaratório, de um árbitro (o judex); e a execução forçada, quando necessária, reclamava a intervenção, em ação especial (actio iudicati), do praetor (magistrado que realmente dispunha do imperium).

Essa duplicidade de ações em torno de um só litígio conservou-se no período formulário, em que o praetor assumiu maiores poderes na organização e encaminhamento da causa, sem, entretanto, eliminar o feitio arbitral do julgamento. Já na era cristã, o império romano chegou a organizar a Justiça de forma autônoma e totalmente pública. A esse período histórico deu-se o nome de extraordinatia cognitio, porque inicialmente o praetor passou a assumir, em determinadas causas, o seu conhecimento e julgamento, eliminando a figura arbitral do judex. Essa abolição foi gradual, mas com o passar dos tempos generalizou-se. O praetor fundiu o imperium com o judicium e se tornou um juiz completo, nos mesmos padrões que nos tempos atuais caracterizam o Poder Judiciário e os Juízes estatais.

No auge da evolução do processo romano já não mais se justificava o recurso a duas ações para alcançar o cumprimento forçado da sentença, pois seu prolator era

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titular tanto do imperium como do judicium. Somente por inércia histórico-cultural foi que se continuou a usar a actio iudicati até a queda do império romano.

Na Idade Média, inicialmente, os novos dominadores do que antes fora o império romano - os povos germânicos - tinham hábitos primitivos no tocante à tutela dos direitos violados. Os credores realizavam por suas próprias forças seus direitos inadimplidos. A execução forçada era privada e não dependia de prévia sentença judicial. Ao devedor é que, discordando da execução promovida pelo credor, competia instaurar o processo de impugnação. Invertiam-se os termos, em relação ao direito romano: primeiro se executava para depois se acertar o direito controvertido.

Mais tarde, sob influência da retomada dos estudos do direito romano nas universidades, os germânicos aboliram a execução privada e aceitaram a necessidade do prévio acertamento do direito do credor por meio de sentença, para só depois cuidar de sua realização forçada. Não aceitaram, porém, que para se cumprir o comando da sentença condenatória tivesse o credor de instaurar uma nova ação, como era da tradição romana. Aboliram, por completo, a actio iudicati. Em seu lugar, os glosadores do século XIII, liderados por Martino de Fano, conceberam a doutrina do officium iudicis, segundo a qual o dever do juiz era não apenas o de julgar, mas incluía, por seu próprio ofício, todas as medidas ou providências para que a condenação se tornasse realidade. Independentemente dos percalços da actio iudicati, competia ao juiz determinar, por decorrência de seu ofício, as medidas de cumprimento forçado das sentenças. Esse sistema recebeu a denominação de executio per officium iudicis.

Esqueceu-se durante vários séculos da velha actio iudicati romana. Só nos últimos anos da Idade Média e nos primórdios da Era Moderna foi que, com o aparecimento dos títulos de crédito, se voltou a cogitar da actio iudicati, para atribuir-lhes maior liquidez, em atendimento às exigências do mercado. Equiparando-se a força do título de crédito à da sentença, poderia o credor ingressar em juízo diretamente nas vias executivas, obtendo desde logo a penhora, sem necessidade de aguardar o trâmite complicado do prévio acertamento em ação condenatória.

A partir de então, e até o século XVIII, existiram na Europa duas vias executivas: uma singela, para o cumprimento da sentença, que se resumia no mandado de execução expedido como consequência automática da condenação; outra sob a forma de ação de execução, sujeita às exigências de um processo completo, inclusive no tocante à eventualidade de contraditório sobre o direito do exequente, por iniciativa do devedor, após o ato inicial da penhora.

No século XIX, sob influência do Código de Processo Civil de Napoleão, entendeu-se que, do ponto de vista técnico, era conveniente unificar as vias executivas. Desapareceu a executio per officium iudicis e implantou-se a ação executiva como procedimento único tanto para os títulos judiciais como para os extrajudiciais.

Se os títulos de créditos saíram prestigiados nessa sistemática processual, as sentenças sofreram grande perda de efetividade. Ao se exigir que o credor, vitorioso no processo de conhecimento, tivesse que iniciar um novo processo para alcançar

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a satisfação de seu direito já revestido da autoridade da coisa julgada, a sentença condenatória foi reduzida a um mero acertamento declaratório: declaração do direito violado e da prestação a que ficava sujeito o violador. Encerrando-se a prestação jurisdicional com tal sentença, praticamente a sentença condenatória em nada diferia das declaratórias, principalmente num processo como o brasileiro que admite a ação declaratória mesmo depois de violado o direito (NCPC, art. 20).1Pela inadequação da actio iudicati para atender à premência do cumprimento de várias condenações, o direito processual teve de manter e ampliar os casos de procedimentos especiais unitários - como o das ações possessórias, ação de depósito,2

ação de nunciação de obra nova,3de despejo etc. - em que a sentença era qualificada como predominantemente executiva, para justificar a imediata expedição de mandado de cumprimento, sem passar pelos percalços da ação autônoma de execução.

As sentenças, após restauração da actio iudicati, passaram a figurar em dois grupos, no tocante ao modus procedendi de seu cumprimento: a) as que, em regime de ações especiais, cumpriam-se de plano, dentro da mesma relação processual em que foram prolatadas, nos moldes da executio per officium iudicis; b) as que, no regime ordinário, submetiam-se a uma nova...

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