Ascetismo jesuítico e disciplina escolar

AutorNorberto Dallabrida
Páginas300-319

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Este* trabalho trata dos dispositivos didáticos de distribuição e avaliação do conhecimento escolar colocados em prática no Ginásio Catarinense, localizado em Florianópolis – Santa Catarina e dirigido pela Companhia de Jesus, entre 1906 – ano de sua fundação – e o início dos anos trinta. Os padres jesuítas que dirigiam o colégio eram herdeiros de uma vigorosa tradição pedagógicas inventada na conjunção das reformas religiosas e das guerras de religião do século XVI. Para fazer frente à expansão escolar protestante, os discípulos de Inácio de Loyola estabeleceram uma extensa rede de colégios e, para mantê-la uniforme, instituíram novo método pedagógico, a “Ratio Studiorum”, que além de definir critérios para recortar e organizar o conhecimento escolar, destacou-se pela proposição de uma “maquinaria escolar”1 que visava manufaturar católicos fiéis e obedientes.

O êxito alcançado pela Companhia de Jesus na educação escolar deve-se em boa parte à implementação regular e uniforme de estratégias e táticas de disciplinamento escolar. Entre as estratégias de “governo” de condutas e de produção de subjetividades definidas na “Ratio”, pode-se destacar o incitamento à atividade permanente do corpo discente, o controle do espaço, a escanção do tempo, a separação dos alunos em classes e grupos, a emulação, a classificação e premiação, a individualização das carreiras escolares.2 Assim, a “Ratio Studiorum”Page 301foi o discurso pedagógico fundador do catolicismo tridentino, sendo adotado e adaptado por outras congregações religiosas, como por exemplo os esculápios e os lassalistas.

No início do século XIX, com a “restauração” da Companhia de Jesus, a “Ratio Studiorum” foi reinventada para responder aos sinais dos tempos da nascente sociedade burguesa e disciplinar. A maquinaria escolar jesuítica definida na “Ratio Studiorum” foi mantida e esmerilhada pelos dispositivos disciplinares dos oitocentos para continuar formando sujeitos letrados e católicos. Entre os mecanismos de refinamento da “disciplina-mecanismo”, pode-se destacar a criação do colégio-internato, o estabelecimento de pequenas classes, a intensificação da individualização das carreiras escolares e a eliminação gradual dos castigos corporais. A incrementação dos instrumentos panópticos para moldar a alma, bem como a proibição expressa das punições no corpo não foram peremptórias, mas desdobraram-se ao longo do século XIX.

Os jesuítas alemães que imigraram para o Brasil desde meados do século XIX para dirigir colégios de ensino secundário, transplantaram a tradição pedagógica da “Ratio Studiorum”. No Ginásio Nossa Senhora da Conceição de São Leopoldo, primeiro colégio da missão jesuítica alemã no sul do Brasil, foram introduzidas práticas de regulação escolar pautadas pela “Ratio”, que seriam disseminadas com a expansão de colégios jesuítas. No início do século XX, quando foi fundado o Ginásio Catarinense, os mecanismos disciplinares da Companhia de Jesus estavam implantados em vários colégios rio-grandenses, sendo aceitos e desejados pelas novas elites burguesas brasileiras, que procuravam produzir-se e reproduzir-se pela escolarização de seus filhos.

A maquinaria escolar jesuítica do Ginásio Catarinense procurava educar muito mais por meio de mecanismos de incitamento do que através de formas de repressão. Colocava em marcha dispositivos didáticos de “controle-estimulação”, que investiam sobre o corpo dos estudantes, de modo que fossem impelidos à ação de forma regular e constante. Por meio da exercitação permanente ou da “coerção sem folga”, não permitia a letargia e transformava os alunos em agentes ativos da aprendizagem, fixando-os no aparelho produtivo escolar. O investimento didático permanente procurava transformar a massa estudantil num corpo discente mais produtivo possível e obediente às regulamentações e normas escolares.

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A otimização do espaço escolar envolvia as operações de segregação, quadriculamento, utilização e distribuição hierarquizada e seriada. O Ginásio Catarinense foi implantado como instituto de ensino secundário com os regimes de externato, semi-internato e internato, como era praxe nos colégios jesuíticos nos séculos XIX e XX. Havia clara intenção de enclausurar os alunos nos muros do colégio e fixá-los o máximo possível no aparelho escolar, procurando afastá-los da família e da sociedade. O colégio procurava sobremaneira quadricular o espaço ginasial, implementando a máxima foucaultiana “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo”. Para tanto, os alunos eram classificados em regimes, divisões e classes, ocupando lugares específicos no espaço escolar e, desta forma, passíveis de rápida localização e identificação. Os alunos eram separados, de acordo com a idade, em divisões ou unidades escolares: a primeira divisão reunia “os maiores”, que freqüentavam os dois últimos anos do ginásio, e a segunda congregava “os menores”, que pertenciam aos três primeiros anos do curso secundário. Na seriação ginasial, os alunos eram divididos em classes: no início em seis, mas, a partir do início da década de dez, foram reduzidas para cinco. Cada classe ocupava uma sala de aula específica que, pelo fato de não ser grande, facilitava o reconhecimento e controle dos alunos.

A ocupação do espaço escolar pelas divisões, classes e indivíduos era determinada pelo corpo dirigente do colégio, que proporcionava a constituição do espaço útil e rigorosamente funcional, evitando desperdícios e indecisões. Nas salas de aula, os lugares nas carteiras eram determinados pelos respectivos regentes das classes, que ordenavam as pequenas turmas, evitando a proximidade de alunos que pudessem provocar desordem. Os pátios específicos das divisões eram administrados pelos respectivos prefeitos ou inspetores e supervisionados pelo prefeito geral, que era responsável pela distribuição do espaço do colégio. No internato, o prefeito de cada divisão também deveria definir os lugares fixos de cada aluno na sala de estudos, no refeitório, no dormitório e na capela.3

Os deslocamentos para os diversos ambientes do colégio eram feitos em filas, rigorosamente organizadas e vigiadas pelo corpo diretivo do colégio, que, para evitar desordens, estabelecia “ordem fixa nas filei-Page 303ras”. No início de cada aula, eram feitas fileiras para o ingresso nas salas de aula, a partir do tamanho crescente dos alunos. No internato, as entradas e saídas dos lugares em fileiras eram ainda mais estipuladas e detalhadas, procurando o melhor fluxo possível dos internos. O regime disciplinar jesuítico procurava transformar o conjunto de alunos num corpo discente que tivesse suas multiplicidades devidamente organizadas, formando – no dizer de Foucault – um “quadro vivo”. Assim, no interior do colégio os alunos eram emoldurados num quadro em perspectiva, em que o espaço era milimetrado, hierarquizado e utilizado de forma “total”, particularmente no internato.

O controle do tempo era outra peça necessária e importante para o funcionamento eficiente da máquina disciplinar. Segundo a tradição centenária da “Ratio”, no Ginásio Catarinense o tempo era minuciosamente escançado por meio da determinação do calendário e do horário escolar, que previa a realização regular das atividades. O ano escolar era denso e contínuo, sendo coberto por aulas entre os meses de março e novembro, que eram ministradas de segunda-feira a sábado, excetuando os feriados civis e católicos. Jaldyr Faustino da Silva, aluno do colégio na década de vinte, lembra que havia aulas pela manhã e à tarde, não existiam férias na metade do ano e adjetiva o ensino naquela época de “intensivo” e “compacto”, concluindo: “Então aquele ensino maciço em cima da gente fazia com que a gente aprendesse a disciplina, não é, e conhecesse mais sobre a disciplina”.4

O dia letivo era de domingos e feriados e nas tardes de terça-feira, quinta-feira e sábado, quando não havia aulas, o horário também era definido, sendo previstos missa, bênção vespertina, momentos de estudo e recreio mais longos.5

Além da sua partição cronologicamente exata, o tempo disciplinar do ginásio era, sobretudo, tornado útil e produtivo, procurando “extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e de cada instante sempre mais forças úteis”. A “utilização exaustiva” do tempo vincava o corpo discente, sujeitando-o à rítmica cronológica do aparelho de produção escolar, por meio do incitamento à freqüência regular e à pontualidade britânica. Havia sobremaneira preocupação com a freqüência dos alunos, pelo fatoPage 304da pontualidade ser praticamente compulsória nas engrenagens da maquinaria escolar. No relatório anual, havia um aviso padrão, repetido todos os anos, que lembrava aos pais dos alunos, tanto internos como externos, “os grandes prejuízos” sofridos pelos alunos que não estivessem presentes às aulas desde o primeiro dia, colocando em risco o aproveitamento e a aprovação.

Ademais, para tornar o tempo ainda mais útil, o ensino era dividido em séries sucessivas e progressivas, em que cada uma tinha conteúdos programáticos específicos, subdivididos em unidades detalhadas, formando o programa. Cada série era marcada por uma prova, que tinha as funções de aferir o nível de conhecimento estipulado, assegurar a normalização da aprendizagem e registrar a diferença de desempenho entre os alunos. Assim, o curso secundário era dividido em séries anuais, que eram marcadas pelos exames de promoção, realizados no final de cada ano letivo, e pelo exame de admissão para o ingresso no primeiro ano. Cada série anual era dividida em quatro bimestres, precedidos por provas e balizados por premiações. Estas divisões e subdivisões do curso secundário eram observadas rigorosamente pelo corpo dirigente e docente do colégio, procurando delimitar, transmitir e avaliar recortes de saber específico nas diversas séries.

No entanto, para estar eficiente, a maquinaria escolar não se restringia à otimização disciplinar do...

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