Aspectos constitucionais da hipótese tributária da taxa pela prestação de serviço público

AutorProf. Vladimir da Rocha França
CargoMestre em Direito Público pela Faculdade do Recife (UFPE). Doutorando em Direito do Estado pela PUC/SP.
Páginas1-32

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1. Introdução

Um dos temas que passou a chamar a nossa atenção foi o problema dos instrumentos jurídicos empregados para a remuneração pela prestação de serviços públicos. Não se pode negar a importância da questão para o exercício da cidadania1.

O cidadão é consumidor necessário desses benefícios gerados pelo Estado ou por quem atue como delegado deste. Afinal, a prestação de serviços públicos destina-se, como toda e qualquer atividade estatal, à materialização dos interesses públicos, ou seja, dos interesses consagrados na Constituição Federal.

Como consumidor, o administrado precisa saber identificar o conjunto de preceitos jurídicos que regulam a prestação que usufrui, permitindo-lhe conhecer os seus direitos e garantias e, também, a reivindicação de uma atividade estatal o menos danosa possível aos seus interesses privados. O Page 2 Estado, por sua vez, necessita empregar corretamente os instrumentos jurídicos que o direito positivo lhe investe, para o melhor logro do interesse da coletividade.

Mecanismo interessante é referido no art. 145 da Lei Maior:

"Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

(...)

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos ou divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição".

O que procuraremos fazer é, numa perspectiva jurídica2, analisar um dos meios que o direito positivo brasileiro determina para a prestação remunerada de serviço público, partindo do enunciado acima transcrito.

Inicialmente, procuraremos elucidar os conceitos de tributo e de serviço público, referidos nesse dispositivo constitucional para, logo após, tentar identificar o alcance das proposições que podemos dele construir. O direito positivo brasileiro constitui a base empírica do trabalho em vossas mãos.

2. Tributo e serviço público como conceitos do direito positivo
2.1. Conceitos do direito positivo e conceitos da ciência do direito

O conceito de serviço público representa um dos focos constantes de convergência de parcela considerável da doutrina. Embora não seja mais apontada como praticamente o sinônimo de toda a atividade desempenhada pelo Estado3, nunca deixou de ser um conceito discutido pela dogmática jurídica que se dedica ao direito público.

Todo o conceito (ou definição), é composto por duas partes: uma, o definiendum, a palavra a ser definida; e a outra, o definens, a enunciação de seu significado4. Os conceitos instrumentalizam o discurso, sejam eles frutos da liberdade de estipulação, sejam eles edificadores de uma realidade dentro do mesmo discurso. Page 3

O direito positivo - enquanto sistema de normas jurídicas válidas (postas ou assim reconhecidas pelo Estado) orientadas à regulação da conduta humana intersubjetiva em determinadas coordenadas de espaço e de tempoemprega os conceitos para selecionar os dados da realidade social que lhe serão relevantes para a sua concreção. Embora não seja possível admitir que os elementos sociais referidos pelos conceitos do direito positivo "ingressem", em sua totalidade, no sistema, a sua influência na composição da realidade do direito positivo não pode ser ignorada. Aliás, o direito positivo constrói sua própria realidade, com base na realidade social que visa influi e segundo o padrão ideológico que lhe serve de norte. Se no meio físico é alterado pelo homem pelo trabalho, a intervenção humana na realidade social exige a linguagem normativa5.

Na perspectiva da dogmática jurídica, constitui o objeto da ciência do direito a descrição do direito positivo. Através de proposições descritivas6, busca o jurista identificar e compreender a estática e a dinâmica desse sistema prescritivo, empregando também conceitos.

Mas qual seria a diferença essencial entre os conceitos da ciência do direito e os conceitos do direito positivo?7 Os conceitos são postos no discurso através de proposições e, por conseguinte, recebem a qualificação própria de seus veículos de introdução.

As proposições do direito positivo são qualificadas como válidas ou inválidas, consoante sua pertinência ao ordenamento jurídico posto ou reconhecido pelo Estado. Por sua vez, as proposições da ciência do direito recebem o epíteto de verdadeira ou falsa segundo sua capacidade de descrever ou não o fenômeno normativo. São injunções necessárias da dissociação metódica entre os mundos do ser e do dever-ser.

Portanto, os conceitos do direito positivo têm natureza prescritiva e vinculam a conduta daqueles responsáveis pela inserção e concretização das normas jurídicas no sistema. Tal conceito será válido ou não, consoante sua pertinência com o direito positivo.

Padecerão de falsidade, seguindo esse raciocínio, todos os conceitos da ciência do direito que forem de encontro aos conceitos do direito positivo.

Após esses esclarecimentos, vejamos o conceito de serviço público. Page 4

2.2. O conceito jurídico-positivo de serviço público

O conceito de serviço público tem especial relevância para o direito tributário positivo - as normas jurídicas válidas orientadas à regulação do fenômeno tributário8 - quando o Estado institui tributos9 para a direta manutenção das atividades que deve desempenhar em prol do interesse social qualificado pela Constituição como interesse público.

O direito positivo pátrio não nos oferece um definiens para "serviço público", obrigando o jurista a realizar um intenso labor para identificar, através dos enunciados desse sistema, o conceito jurídico-positivo de serviço público. Tarefa, aliás, que a doutrina administrativista não almejou lograr com unanimidade10.

Voltemos novamente para o texto constitucional (grifamos), no seu art. 175, caput:

"Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".

Pelo que depreende desse enunciado, a prestação de serviço público constitui uma atividade privativa do Estado. Somente mediante sua regular concessão ou permissão, é juridicamente permitida o desempenho dessa atividade pelo particular. E, mesmo assim, não perde o Estado a titularidade de tal atribuição.

Mas não basta apenas identificar quem desenvolve a atividade para qualificá-la juridicamente. É preciso ainda investigar no que consiste "prestação de serviço público"11.

A prestação de serviço público constitui o objeto de uma relação jurídica entre o Estado (ou o particular que ele delegou) e o cidadão. Afinal, somente a conduta humana é passível de regulação jurídica, ou seja, de Page 5 ser qualificada como obrigatória, proibida ou permitida pelo direito positivo12.

O serviço público, enquanto objeto da prestação, representa uma comodidade ou utilidade material para o cidadão (ou mesmo outro ente estatal na posição de seu consumidor), cuja fruição é direta e depende necessariamente de seu oferecimento. São necessidades constitucional ou legalmente fixadas como bens (num sentido lato) relevantes para a coletividade. Como por exemplo, os serviços de telecomunicações13.

Contudo, o serviço somente merecerá o adjetivo "público" quando se tratar de objeto de uma prestação somente realizável pelo Estado ou por quem tenha recebido delegação hábil para tanto. Mas outro elemento ainda se faz necessário para configurar o benefício como serviço público: o regime jurídico administrativo14.

A distinção entre direito público e direito privado, ao nosso ver, não é meramente doutrinária. Através dos princípios jurídicos, o direito positivo fixa os pontos de convergência das demais normas jurídicas, visando racionalizar a regulação da conduta social. No caso do direito público, há um conjunto de princípios que torna peculiar a formação e o desenvolvimento de considerável parte das relações jurídicas entre Estado e o particular, se comparadas com suas congêneres entre os particulares. O direito positivo não deixa de ser um só quando reparte-se em público e privado, havendo aqui, tão somente, o metódico agrupamento de seus preceitos em prol dos interesses que deve concretizar.

Constitui o regime jurídico administrativo, o conjunto de normas jurídicas válidas que regulam o desenvolvimento da função administrativa, centradas em dois cânones básicos: a prevalência do interesse público...

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