Ataque aos cerrados: a saga dos geraizeiros que insistem em defender o seu lugar

AutorJoão Silveira D'angelis Filho - Carlos Alberto Dayrell
CargoCarlos Alberto Dayrell é engenheiro agrônomo, ambientalista e pesquisador do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA/NM). [cadayrel@ig.com.br]
Páginas10-33
ATAQUE AOS CERRADOS: A SAGA DOS GERAIZEIROS
QUE INSISTEM EM DEFENDER O SEU LUGAR
JOÃO SILVEIRA D’ANGELIS FILHO *
CARLOS ALBERTO DAYRELL **
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo buscaremos analisar as formas de ataque do capitalismo em sua
fase mais truculenta e “verde”, através dos mecanismos modernos de
expropriação material e simbólica sobre os Cerrados brasileiros e suas
populações. Faremos um percurso de aproximação progressiva à questão,
localizando inicialmente os mecanismos de instalação dos tentáculos das
grandes corporações internacionais do agronegócio sobre a América Latina e o
Brasil para, a seguir, mergulharmos numa realidade específica, o caso dos
geraizeiros da Serra Geral, no Norte de Minas Gerais.
A partir das reformas reestruturantes nas duas últimas décadas do século XX,
em que muda radicalmente o papel dos Estados Nacionais e as regras das
relações comerciais entre países e blocos econômicos, passamos a viver um
novo período de globalização, de derrubamento de fronteiras econômicas,
políticas e de visões de mundo. Um novo modelo está se conformando a partir
do liberalismo econômico e social, da abertura e integração dos mercados.
Essa nova dinâmica impulsiona a inserção das regiões na economia mundial,
baseada nas transformações produtivas do setor agroalimentar e nas novas
oportunidades que se apresentam no comércio internacional. A década de
1990 define, notoriamente, mudanças radicais no velho paradigma da
agricultura. Antes protegida em economias fechadas, com um pesado
investimento estatal, especialmente limitada à produção primária e com uma
precária vinculação com outros agentes econômicos, a agricultura
transforma-se num setor articulado às políticas macroeconômicas, enfocando
as vantagens comparativas, ampliando os serviços colaterais, integrados
verticalmente e regionalmente e concentrando-se, cada vez mais, em pólos de
desenvolvimento (BIRD, 1999).
A busca da competitividade se traduziu em esforços de redução de custos,
aumento da produtividade e melhoria da qualidade dos produtos agrícolas. As
estratégias usadas foram a expansão da escala de produção – no Brasil, em
especial, de soja, carnes e frutas e a mecanização, afetando, por
conseguinte, o mercado de terras e a ocupação rural. A redução dos preços da
terra e da mão-de-obra, e um cenário favorável de estabilidade política e
macroeconômica, atraíram para a região investimentos privados e companhias
multinacionais do agronegócio, impulsionando um processo de concentração e
diversificação do comércio e da agroindústria. Especialmente no Brasil, Chile,
México e Argentina, inicia-se um processo de fusão e concentração de
empresas nacionais, como estratégia de aumento da capacidade de
competição com as grandes corporações do setor de alimentos, que agora se
apresentam no mercado.
A rápida expansão da economia internacional a partir dos centros dinâmicos,
ou seja, a partir dos países cêntricos, cada vez mais depende de acesso às
fontes de recursos naturais e da utilização das grandes reservas de
mão-de-obra barata localizadas na periferia. Decorre daí três problemas: a
apropriação dos frutos da expansão econômica, a orientação geral do
processo de acumulação (Furtado, 1996: 71-74) e a governabilidade sobre a
voracidade das meta-redes de negócios sobre os recursos biosféricos. O fluxo
de riqueza produzido dentro desses complexos se move a partir do interesse
dos que estão no centro do sistema. Às regiões, vistas como rinconadas,
sertões embrutecidos, cabe receber estas atividades como ajuda ao
desenvolvimento, mesmo sendo, na verdade, relegado a estas a pilhagem e o
saque voraz de seus estoques de capital natural.
Desde esta perspectiva, o novo sistema mundial está tencionando a agricultura
a uma escala global – conflito Estados Unidos da América versus Comunidade
Econômica Européia –, incrementando a polarização entre pobreza e riqueza,
e entre nações, regiões, comunidades e indivíduos. Um pequeno grupo de
corporações domina a estrutura global de poder, direciona a produção e
determina como se distribuem os elementos de bem-estar. Como
conseqüências dessas mudanças, imensas manchas da América Latina são
concedidas como territórios livres sobre os quais penetram os tentáculos de
parte dos negócios de imensas corporações do setor de alimentos, insumos e
logística. Sobre estes territórios se implanta uma agricultura tecnificada,
integrada ao setor de insumos estrangeiros, às agroindústrias graneleiras e às
mega-corporações do setor de alimentos, bebidas e fumo mas,
fundamentalmente, integrada verticalmente ao mercado internacional. Mais
recentemente, esse tipo de exploração veio a ser chamada de agronegócio.
Este novo movimento “civilizador” também se avizinha aos Cerrados do Brasil,
sob as vestes modernas do agronegócio. Busca integrar esta região, a todo
custo, como produtora de matéria prima barata, ora com os plantios
homogêneos de eucalipto para produção de celulose e carvão que vai
alimentar os altos-fornos que aquecem a cadeia do aço e os negócios
correlatos a este, ora com os pólos de agricultura irrigada, ora com a pecuária
de corte ou os pólos de soja e algodão. Tais “boas novas”, na verdade, se
inserem como parte de complexos oligopólios que se estruturaram em escala
planetária, com tentáculos por todos os cantos do planeta, estabelecidos na
estrutura global de produção e consumo.
Num artigo recente publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Carlos
Porto Gonçalves (2004) nos alerta para dois fatos: primeiro, que o agronegócio
tem crescido mais significativamente sobre os Cerrados, as Savanas
brasileiras; segundo, que o mapa da violência no campo se sobrepõe ao mapa
do agronegócio no Brasil, encaixando-se nos lugares onde este avança e se
fixa. Tal constatação, que não repercute nos meios de comunicação de massa,
nos faz acreditar nesse acordo tácito entre governos e corporações
transnacionais na constituição de territórios livres onde, para a expansão do
agronegócio, tudo é permitido: terras sem leis, como nos tempos malditos dos
coronéis, e legislações agrária, trabalhista e ambiental relaxadas, criando as

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