Aquestão do sujeito e o sujeito em Alain Touraine

AutorNoli Bernardo Hahn
CargoProfessor do programa de pós-graduação em Direito – Mestrado da URI.
Páginas177-187

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Questões introdutórias

Retomar a discussão do tema sujeito evidencia-se pertinente e relevante nos dias de hoje. É um tema de pertinência filosófica. O seu debate, no entanto, abrange e interessa outras áreas. Lembro, especialmente, aqui, temas como responsabilidade civil, responsabilidade penal, culpa, dolo, má fé, etc. Todo cidadão que possui uma mínima formação e informação sabe que se trata de categorias de compreensão que denotam sentido na área da ciência jurídica. Talvez esse mesmo cidadão não saiba que se está debatendo o tema sujeito ao se construir teorias que envolvam tais categorias.

Ao procurar entender razões que fazem com que mulheres se libertem de seus companheiros após anos e anos de violências e sofrimentos vividos, sujeito pode evidenciar-se um tema central para a compreensão dos motivos que levam a romper a relação.

Ao se discutir novas famílias, relações homoafetivas, direitos sucessórios em relações homossexuais, direitos fundamentais ou direitos humanos, direitos sexuais e direitos reprodutivos, direitos culturais, o tema sujeito emerge como fundamental nessa discussão.

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Lembro, apenas, como exemplo, dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o princípio da pessoalidade inerente ao art. 5º, XLV e XLVI. Este princípio é resultado de todo um debate e embate sobre o tema sujeito.

Volvemo-nos um instante à história. As reflexões que inspiraram as grandes religiões orientais, dentre elas o javismo hebreu, o judaísmo, o cristianismo, o islamismo, o budismo, afirmavam predominantemente a idéia de que o todo precede a parte. Esta idéia foi fundamental para afirmar que o todo também é mais importante que a parte. A filosofia grega não rompe com essa idéia milenar. Na relação entre cidadão e polis, a polis predomina. É ela que dá sentido ao cidadão e não o contrário. Sócrates, por exemplo, está preso, condenado à morte. Deverá tomar cicuta, um veneno. Ele não se defende. Aceita a decisão do todo. Com a ajuda de um “agente penitenciário”, poderia até fugir. Ele “escolhe” morrer, porque assim o todo havia decidido.

A idéia de que o todo é anterior e é mais importante que a parte fez história até o final do período conhecido como Idade Média. Monarquia (mono – arché: uma origem, um princípio), tradições, mandamentos, etc., são categorias de compreensão que denotam sentido a partir da compreensão de que o todo antecede, predomina, domina e merece reconhecimento e veneração.

Mesmo que possamos encontrar textos de tradição hebraica e cristã sobre preocupações com o indivíduo, é propriamente no período histórico, conhecido como Idade Moderna, que se inicia uma reflexão que afirma a parte como anterior e mais importante que o todo. Inicia-se, pois, uma reflexão sistemática sobre sujeito. Três escolas filosóficas merecem ser lembradas que, com suas divergências, tratam do mesmo tema. Com René Descartes, maior expoente do racionalismo, e seus seguidores, a razão recebe o status como fundamento de todo o conhecimento possível. “Cogito, ergo sum” – “Penso, logo existo” consiste no fundamento, no ponto de partida para a construção do pensamento de Descartes e, o que interessa mais diretamente nesse artigo, tal conclusão do seu pensar se torna o argumento decisivo para definir quem é o sujeito. O sujeito cartesiano é o “eu” como puro pensamento, um ser pensante, uma res cogitans (coisa/ser pensante) separada da res extensa (coisa externa, material, realidade do corpo). O ser humano é identificado, definido e reduzido à razão. A razão se torna o critério da verdade. É verdadeiro apenas o que é claro para minha razão. Francis Bacon, John Locke e David Hume, conhecidos como empiristas (empeiria = experiência), ao contrário dos racionalistas, asseguram a experiência sensível como determinante ao processo do conhecimento. Para o empirismo, a experiência é o critério de verdade. Somente é verdadeiro quando empiricamente algo pode ser provado. Para os empiristas, sujeito não é o ser pensante, mas quem empiricamente transforma as coisas. Emanuel Kant torna-se um crítico tanto do racionalismo como do empirismo. Em seu livro, Crítica da razão pura, Kant interroga se é possível uma “razão pura”, independente da experiência. Pergunta, também, se é possível uma “razão prática” (livro – Crítica da razão prática) independente de formas apriori. Ele afirma que não é possível uma razão independente da experiência, como também não é possível uma razão reduzida à experiência. O conhecimento, para Kant, constrói-se, na inter-relação entrePage 179juízos universais e experiências sensíveis. Em outras palavras, o conhecimento é constituído pela forma a priori do espírito e pela matéria que se recebe através da experiência sensível. Procura, assim, superar a dicotomia existente entre racionalismoempirismo. Sujeito para Kant não será o “penso, logo existo”, nem o que transforma empiricamente as coisas. O sujeito kanteano, não deixa, no entanto de ser idealista: ele é um construtor da ordem do universo, fazendo experiências que se iluminam e se esclarecem em nosso espírito graças às estruturas a priori.

A lembrança sintética de alguns elementos das três correntes filosóficas (racionalismo, empirismo, apriorismo ou criticismo) ajuda a entender o rompimento entre uma “razão” externa, que dita as regras, as normas, a lei (até a Idade Média) e uma razão interna, a do sujeito, reflexão que tem seus inícios com a denominada Idade Moderna. A descoberta, o reconhecimento, a proclamação do sujeito consiste no conhecimento da razão interna, independente da tradição, dos mandamentos, da mono arché. O iluminismo representa essa ruptura que gera um otimismo no poder da razão (autônoma e iluminada) de reorganizar o mundo humano, de construir o “céu” na terra, de instituir, constituir e construir a res publica (coisa pública, a República). Os grandes ideais da Revolução Francesa (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), as idéias positivistas, utilitaristas, pragmatistas possuem seu nascedouro exatamente no e a partir do rompimento com uma razão milenar externa (Deus-essência, tradição, autoridade absoluta, ...) e a afirmação lenta do sujeito, da razão interna.

No século XIX, levanta-se uma voz ao se perceber que a aplicação das idéias liberais excluía da condição de sujeito a maioria da população. Karl Marx percebe que a condição de sujeito estava intrinsecamente vinculada ao conceito de propriedade. Somente aqueles que eram proprietários de meios de produção eram reconhecidos como sujeito. Marx, conclamando os trabalhadores de todo o mundo para unir-se, proclama o proletariado como sujeito coletivo da história. Importante ressaltar que a filosofia marxista ao proclamar a luta de classes como a força motora da transformação histórica, afirmando uma razão coletiva – e não uma razão de perspectiva individual/liberal – rompe igualmente com a tradição milenar que afirmava uma razão externa a ser seguida, respeitada, venerada e cultuada.

As reflexões feministas, a partir do século XVIII até nossos dias, trouxeram outra grande contribuição ao debate do tema sujeito. Ao penetrar nas sutilezas tanto do pensamento liberal como do pensamento marxista, as filósofas feministas constataram que sujeito fundamentalmente era concebido e definido como identidade universal, ocultando e desconsiderando especificidades. Na visão da crítica feminista, as tradições filosóficas ocidentais, procurando apresentar um sujeito universal, apresentavam-no como masculino, branco, heterossexual (e proprietário – especificamente a tradição de cunho liberal).

Em pleno século XX, com toda a consciência que a reflexão centenária possibilitou em relação à afirmação do sujeito, rompendo com uma tradição milenar de sujeição a uma razão externa, fomos surpreendidos com uma ‘mão invisível’ que estava tomando as rédeas da história. A mão invisível, onipresente, onipotente, éPage 180denominada mercado. Começa-se a dizer que o mercado decide, que o mercado impõe, que o mercado escolhe.

Iniciamos o século XXI e o homem moderno ou pós-moderno está em dúvida: afinal, quem decide, quem escolhe? A razão ou o mercado? Uma razão individual ou uma razão coletiva? ‘Eu’ ou ‘outro’? Este artigo não pretende responder, especificamente, essa questão. Penso, porém, que estudos de Alain Touraine sobre sujeito, que são de grande relevância para reflexões necessárias que a atualidade nos pede, tal questão encontra-se presente. Focalizo, a partir de agora, escritos desse autor.

1 Alain Touraine: modernidade e sujeito

Afirmei anteriormente que sujeito é um tema filosófico. De fato o é. Alain Touraine, em seus escritos, se diz sociólogo e historiador. Não é propriamente filósofo. Perguntar sobre sujeito, em princípio, significa penetrar em preocupações teóricas do pensamento especulativo. Touraine concebe sujeito como não-social. Esta concepção insere o pensador francês numa noção filosófica especulativa de longa história. Como sociólogo e historiador...

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