A superação de regras por princípios jurídicos na atividade jurisdicional: um enfoque pela análise econômica do direito

AutorCristiano Carvalho - Manoel Gustavo Neubarth Trindade
CargoDoutor em Direito pela PUC/SP - Pós-Doutor em Direito e Economia pela U. C. Berkeley
Páginas93-106

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1. Introdução

A possibilidade da superação de regras por princípios é questão controversa. Atualmente a doutrina jurídica brasileira encontra-se, em certa medida, demasiadamente deslumbrada com os princípios jurídicos. As regras passaram a ser consideradas por alguns como sinônimo de conservadorismo, de impedimento à consecução de valores mais elevados, sejam estes chamados de direitos fundamentais, de justiça social ou da "dignidade da pessoa humana".

Tal visão, todavia, não procede. De modo a atender ao próprio sobreprincípio da segurança jurídica, valor-sustentáculo de qualquer ordem jurídica que almeje ser democrática e libertária, é de importância basilar a preponderância das regras sobre normas mais vagas e maleáveis que são os princípios jurídicos. É que as regras têm uma objetividade que os princípios não possuem - ainda que estes sejam o fundamento axiológico daquelas, é com as regras que se incentiva a ação humana inter-subjetivamente, de modo a justamente se alcançar os valores morais consagrados pelo contrato social.

Entretanto, há situações em que as regras por vezes não são suficientes para resolver problemas práticos de decisão jurídica - os chamados hard cases. Apenas nesses casos é que as regras devem ser superadas em prol de princípios, espécie de normas jurídicas que, justamente por seu caráter mais vago e argumentativo, funcionam como base de argumentação e fundamentação para resolução de conflitos de interesses.

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Assim, de forma sucinta, definimos o fenômeno da superação de regras como a inobservância, total ou parcial, por parte dos julgadores, em casos excepcionais e em razão de imperiosa necessidade, de determinados regramentos, a fim de se alcançar valores mais elevados, igualmente inseridos no ordenamento jurídico e muitas vezes igualmente almejados pela própria regra superada.

Como é evidente, a justificativa da obediência às regras vai muito além da antiga idéia de Montaigne pela qual as leis devem ser obedecidas não porque são justas, mas porque são leis1 - entendimento que induz à errônea compreensão da legitimação apenas por força da autoridade. Entretanto, de modo geral, pode-se dizer que as regras têm a função de decidir, de modo prévio, a forma de exercício do poder, afastando as incertezas e controvérsias que surgiriam caso tais escolhas não tivessem sido realizadas antecipadamente, além de reduzir a possibilidade da ocorrência de arbitrariedades.

Entretanto, em que pese a na maioria das vezes as regras apresentarem soluções previsíveis, eficientes e equânimes dos conflitos sociais, suas aplicações também envolvem valores e carecem de ponderações, podendo, portanto, em circunstâncias excepcionais, ser superadas - desde que, é claro, observadas as necessárias condições.

Assim, o escopo do presente trabalho é propor modelo jurisdicional de superação de regras maximizador de eficiência através da Análise Econômica do Direito, definindo-se requisitos substanciais, bem como aspectos procedimentais de sua aplicação.

Neste sentido, a concepção de modelos de superação de regras parece-nos de extrema relevância, porquanto se revelam esforços pragmáticos no sentido de propor procedimentos capazes de sistematizar e objetivar a resolução destas espécies de obstáculos tão presentes na atividade jurisdicional, com enormes efeitos nas esferas individual e agregada.

Muitos antes de servir como estímulo para a inobservância de regras jurídicas, a proposição de modelos de superação, como ora se faz, objetiva tornar a atividade jurisdicional passível de verificação e controle, de modo a permitir a otimização de sua prestação.

Ainda, a proposição destas espécies de modelos se revela ainda mais importante porquanto, em que pese à sua crucial relevância, principalmente em Países de origem legal romano-germânica, a doutrina parece não enfrentar devidamente o tema - o que se infere pela escassez de estudos sobre esta temática.

Cabe assinalar que, muito embora os escassos modelos existentes se demonstrem empreendimentos de indubitável relevo, parece-nos pertinente ainda mais sistematizá-los, com a concepção de procedimentos mais objetivos e padronizados, que permitam aferição dos julgados e análises comparativas, evitando, deste modo, inefi-ciências, assim como os perniciosos efeitos que justamente a concepção de regras almeja evitar. É que usualmente a teoria jurídica tradicional utiliza-se de métodos puramente retóricos ou, quando muito, emprega disciplinas como a Lógica Deôntica ou a Teoria da Linguagem. Ainda que tais disciplinas sejam de enorme valia e utilidade, muitas vezes não são suficientes.

Não se pode esquecer que o Direito opera na realidade, gerando efeitos que restringem concretamente a liberdade dos indivíduos. No caso extremo (ou que deveria ocorrer apenas em situações extremas) da superação de uma regra por um princípio, uma análise conseqüencialista se torna fundamental para o tomador de decisões escolher corretamente a solução para o caso concreto. Daí a necessidade e importância da Análise Econômica do Direito,

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pois suas ferramentas possibilitam enfocar o Direito como uma máquina geradora de incentivos à conduta humana e, dependendo de como esses incentivos forem manipulados, diferentes resultados advirão a partir da decisão tomada pelo juiz. Em suma, a superação de uma regra por um princípio deve ser feita levando em conta as conseqüências possíveis dessa escolha.

O modelo que propomos aplica-se a qualquer ramo do Direito. No que tange ao direito tributário é interessante perceber que, não obstante sua operabilidade se dar primordialmente através das (inúmeras) regras que determinam não apenas o tributo a ser pago, como também a miríade de obrigações e deveres correlatos referentes à sua arrecadação e fiscalização, os princípios têm inédito relevo. Não há outro segmento do sistema jurídico tão presente na Constituição Federal quanto o tributário, e sua conformação é intensamente princi-piológica. Daí a tentação de a toda hora se evocar princípios em detrimento de regras, como se estas fossem inadequadas ou, mesmo, ilegítimas a priori.2 Ainda que isso por vezes possa beneficiar um ou outro contribuinte em particular, acaba gerando instabilidade e, conseqüentemente, insegurança jurídica. Logo, o resultado para a coletividade é negativo.3

Não se quer defender, aqui, uma submissão do contribuinte ao Estado - longe disso. Entretanto, não há dúvida de que a apelação constante aos princípios é exagerada e imprudente, potencialmente acarretando a incerteza jurídica assim como seus companheiros inafastáveis: custos de transação e ineficiência econômica, entraves contumazes ao desenvolvimento.

Portanto, procuraremos demonstrar que a apelação aos princípios e a superação das regras por eles deve ser a exceção, e não a norma geral, nas decisões jurisdicio-nais.

2. Regras jurídicas como fixadoras de preços

Como já referido, pode-se dizer, em primeiro lugar, que as regras têm a função de predefinir a solução para conflitos inter-subjetivos, afastando a controvérsia e as incertezas que surgiriam caso tais escolhas não tivessem sido feitas previamente pelo legislador.

Em segundo lugar, as regras visam a reduzir a arbitrariedade, conquanto restrinjam a discricionariedade, conforme bem ilustram as palavras de Schauer: "Pode consistir em uma desvantagem quando surge no caminho dos sábios julgadores que, ao perseguirem de forma precisa o bem, intuitivamente levam em consideração todos os fatores relevantes. Entretanto, também pode ser uma qualidade, quando surge para restringir julgadores desavisa-dos, incompetentes, de má índole, ávidos por poder, ou simplesmente equivocados, cujo próprio senso de bem diverge daquele do sistema ao qual servem".4

Em terceiro lugar, a opção pelas regras busca evitar problemas de coordenação, deliberação e conhecimento, ensejan-

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do ambiente no qual sejam possíveis o planejamento, o desenvolvimento e o aprimo-ramento das atividades dos indivíduos e das instituições, além de evitar os excessivos custos que a necessidade de solucionar individualmente cada caso, com autoridade específica e fundamentação própria, acabaria por gerar. Nesse sentido, ainda que criação de regras implique um custo legislativo maior, geram menos custo no processo decisório pelo aplicador.5

Partindo destas premissas e analisando-as sobre o prisma da Análise Econômica do Direito, faz-se oportuno registrar que todo o sistema legal se consubstancia em conformador de ambiente no qual os agentes econômicos em sentido lato (aí compreendidos, de forma simplificada, as famílias, as empresas e o Estado) irão interagir, a fim de buscar o máximo de satisfação possível (utilidade para os economistas).

Através desta idéia simples - a qual, todavia, encerra em si enorme poderio explicativo - podemos compreender os sistemas legais e mais precisamente as normas jurídicas como sendo fixadoras de preços para as ações dos agentes, capazes de alterar os custos e benefícios relativos das condutas e, portanto, influenciar comportamentos. Naturalmente que por "preço" se entende algo além do mero custo monetá-rio, vez que existem custos que podem ser medidos, v.g., em prestígio, honra, lealdade e reputação.6

Nos gráficos abaixo7 mostramos a Curva de Preço-Consumo e a Curva de Demanda. Conforme é possível observar, do ponto de vista geométrico, havendo variação do preço (p1) do bem 1 (x1), enquanto o preço (p2) do bem 2 (1x2) e a renda (1m) permanecem constantes, a Reta Orçamentária irá girar. Ademais, unindo-se os Pontos Óti-mos, obteremos a Curva de Preço-Consumo, como ilustra a Figura 1 (A). Essa curva representa as cestas que seriam demandadas nos diferentes níveis de preços de x1

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