Atos de concentração e ecossistemas de plataforma digital: revisão da experiência brasileira

AutorNicolo Zingales/Bruno Polonio Renzetti
Páginas453-504
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Atos de concentração e
ecossistemas de plataforma
digital: revisão da
experiência brasileira
Nicolo Zingales
Bruno Polonio Renzetti
Introdução
Neste ponto do livro, deve já estar claro que os ecossistemas de plataformas
digital (EPDs) apresentam alguns desafios para a aplicação antitruste como
tradicionalmente o conhecemos. Este capítulo visa ilustrar que os ecossiste-
mas podem ser criados ou fortalecidos por meio de atos de concentração do
tipo conglomerado, mas essas dinâmicas permanecem pouco investigadas
no atual sistema jurídico brasileiro. Isso ocorre por pelo menos três razões:
primeiro, porque as aquisições nos mercados digitais geralmente passam des-
percebidas pela autoridade antitruste, principalmente devido ao reduzido
tamanho da empresa adquirida1. Em segundo lugar, esses casos são geral-
mente tratados sob um procedimento acelerado, o que limita ainda mais as
1 Tanto a Europa quanto o Congresso dos Estados Unidos estão atualmente analisando
propostas de legislação com potencial para ampliar o escopo do controle de fusões pa-
ra preencher essa lacuna, exigindo a notificação das aquisições feitas pelas plataformas
digitais mais proeminentes. PICKER, R. “The House’s Recent Spate of Antitrust Bills
Would Transform Big Tech”, ProMarket, 29 jun. 2021. Disponível em: https://promarket.
org/2021/06/29/house-antitrust-bills-big-tech-apple-preinstallation/. Do lado europeu, no
entanto, os críticos apontaram que a proposta do Digital Markets Act (“DMA”) não aborda
adequadamente o problema, pois exige a notificação apenas de aquisições no setor digital,
enquanto a proposta apresentada pela Competition Markets Authority (“CMA”) do Reino
Unido estenderia essa obrigação a todas as aquisições. CAFFARRA, C.; SCOTT MORTON,
F. “The European Commission Digital Markets Act: a translation”, 05 jan. 2021. Dispo-
nível em https://voxeu.org/article/european-commission-digital-markets-act-translation.
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454 A aplicação do direito antitruste em ecossistemas digitais
chances de discussões sobre a validade de algumas teorias de dano e de elas
se consolidarem na jurisprudência antitruste brasileira. Terceiro, porque
mesmo quando uma aquisição é notificada e processada em procedimen-
to ordinário, preocupações anticompetitivas podem não ser identificadas
devido à orientação muito limitada fornecida pela autoridade por meio de
diretrizes ou jurisprudência sobre o quadro analítico para lidar com os efei-
tos de conglomerado, que são típicos de expansão dos EPDs.
Nesse contexto, este capítulo examina os desafios impostos pelas EPDs
na análise de atos de concentração pelo Conselho Administrativo de De-
fesa Econômica (Cade), órgão brasileiro de defesa da concorrência. Não se
defende uma mudança radical no controle de fusões; em vez disso, reco-
mendamos um esclarecimento da estrutura analítica aplicável a fusões de
conglomerados e um ajuste da abordagem básica para fusões envolvendo
EPDs. A estrutura do capítulo é a seguinte: após uma breve introdução aos
aspectos práticos da execução de atos de concentração no Brasil (Seção 1),
fazemos um balanço das possíveis teorias de danos envolvendo atos de con-
centração conglomerados (Seção 2) e, posteriormente, fazemos um exercício
de aplicá-los retroativamente a atos de concentração passados envolvendo
EPDs (Seção 3). Por fim, concluímos apresentando um resumo dos resulta-
dos, propondo mudanças para uma abordagem mais consistente por parte
da autoridade nesses tipos de ato de concentração (Seção 4).
1. Premissa: atos de concentração no Brasil
O direito concorrencial brasileiro passou por uma reforma legislativa significa-
tiva em 2011, quando foi promulgada uma nova lei de defesa da concorrência
— a Lei n. 12.529/2011. Essa lei alterou toda a estrutura do Sistema Brasileiro
de Defesa da Concorrência, inclusive o regime de controle de atos de concen-
tração. Até 2011, as operações de concentração eram analisadas pelo Cade
ex-post: as partes incorporadoras tinham que apresentar uma notificação
ao Cade em até quinze dias após a conclusão da operação. Essa arquitetu-
ra de controle de concentração mostrou-se insuficiente — era difícil para o
Cade bloquear uma fusão e ordenar quaisquer desinvestimentos após o fe-
chamento do negócio. Com a promulgação da Lei n. 12.529/2011, o Brasil
adotou um regime de revisão ex-ante de atos de concentração. Atualmente,
fusões, aquisições e joint ventures em que o faturamento de uma das par-
tes excede R$750 milhões e o de pelo menos uma das outras partes excede
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R$75 milhões
2
devem ser apresentados previamente ao Cade para libera-
ção. O descumprimento desse requisito sujeita as partes a uma investigação
de gun jumping, com multas de até R$60 milhões.
Considerando que o Brasil segue um padrão de notificação obrigató-
ria de atos de concentração com base no faturamento de ambas das partes
na operação, é fácil entender por que algumas transações potencialmen-
te muito significativas para EPDs não foram submetidas ao Cade: uma das
partes não gerou volume de negócios suficiente no país. Um relatório re-
cente da organização não governamental Data Privacy Brasil mapeou as
mais importantes fusões de dados realizadas por grandes empresas de tec-
nologia e concluiu que a grande maioria delas não foi submetida ao Cade,
devido aos atuais critérios de submissão obrigatórios estabelecidos pelo Lei
n. 12.529/2011 (Griebeler da Motta, 2021). Esses casos incluíram os princi-
pais casos internacionais envolvendo plataformas digitais como Facebook/
Instagram, Google/Waz e, Facebook/WhatsApp, Apple/Shazam e Google/Fitbit.
Assim, diferentemente de outras jurisdições, não nos beneficiamos da análise
da autoridade brasileira como guia para a análise desses casos principais. No
entanto, pode-se duvidar da ideia de que tais transações não tenham efeitos
plausíveis no cenário competitivo no Brasil, especialmente diante dos altos
níveis de consumo no país dos produtos envolvidos nessas concentrações.
Além disso, a maioria dos atos de concentração apresentados pelo Cade
é processada e analisada sob o rito sumário da autoridade, levando a uma
análise significativamente menos detalhada. De acordo com a ferramenta
estatística “Cade em Números3, 610 casos de concentrações foram deci-
didos pela autoridade em 2021, dos quais 527 foram processados pelo rito
sumário, e apenas 83 pelo rito ordinário. Ou seja, os processos sumários re-
presentaram 86% de todos os atos de concentração apresentados ao Cade
em 2021. O texto original da Lei de Defesa da Concorrência não previa um
procedimento sumário, que foi introduzido pela Resolução Cade n
o
02/2012
4
,
especificando as situações em que é aplicável. Partindo do pressuposto de que
o procedimento sumário deveria ser aplicado quando se considera que uma
2 Ver art. 88 da Lei no 12.529/2011.
3 O Cade em Números é uma ferramenta desenvolvida pela Autoridade que permite ao usuá-
rio pesquisar dados relacionados às atividades do Cade filtrando por diversos parâmetros.
Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/centrais-de-conteudo/cade-em-numeros.
4 Publicado no Diário Oficial do Brasil em 31 de maio de 2012 (no 105, Seção 1, pp.
88-91). Atualização publicada em 07 de outubro de 2014 (no 193, Seção 1, pp. 43-44).
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