Autonomia para o suicídio assistido no contexto dos direitos da personalidade e do direito ao envelhecimento saudável

AutorSálvia de Souza Haddad
Páginas25-49
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AUTONOMIA PARA O SUICÍDIO
ASSISTIDO NO CONTEXTO DOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE E
DO DIREITO AO ENVELHECIMENTO
SAUDÁVEL
Assentado o princípio da dignidade da pessoa humana em suas principais dimen-
sões, bem como os conceitos jurídicos ligados às decisões de f‌im de vida, a pesquisa
prossegue para o estudo dos direitos da personalidade e do poder de disposição em
situações jurídicas existenciais, para depois levá-los ao contexto do envelhecimento
saudável e suas peculiaridades, como institutos ligados ao exercício da autonomia
para decisão pelo suicídio assistido baseado na ideia de vida completa. Nesse capí-
tulo também abordaremos o paternalismo jurídico e os casos Goodall e Wuillemin.
2.1 DIREITOS DA PERSONALIDADE E O PODER DE DISPOSIÇÃO NAS
SITUAÇÕES JURÍDICAS EXISTENCIAIS
Somente no f‌inal do século XIX a sociedade mundial constatou a necessidade
de se conferir proteção a esfera privada das pessoas. A demora na tutela da vida
privada se deu, entre outras razões, porque a sociedade não percebia a existência de
limites entre público e privado, noção que surgiu apenas após certa concepção de
civilização (MORAES, 2010).
As declarações de direito surgidas no f‌inal do século XVIII buscavam libertar o
homem das várias limitações impostas pelo sistema feudal, e assim se ingressou num
novo ambiente com a previsão de direitos a partir dos quais a pessoa podia se valer
perante o Estado, mas de viés estritamente individualista. Não se pode dizer que
a proteção à pessoa humana trazida por estas declarações era de caráter universal,
mas antes, pretendiam atender à classe burguesa em ascensão (DONEDA, 2002).
No período pós-revolução francesa, o direito privado se preocupava em garantir
o exercício do domínio sem interferências do Estado e com a liberdade prevista na
disciplina dos contratos. Para o liberalismo individualista, ser autônomo signif‌icava
poder concretizar seus interesses sem interferência em suas relações e comporta-
mentos (SILVA, 2006). A f‌ilosof‌ia liberalista nos séculos XVIII e XIX consagrou o
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princípio da autonomia da vontade, muito bem retratada pela premissa de Francis-
co Amaral (1984) a partir da qual a base da vontade humana reside na liberdade e
qualquer intervenção estatal deve ser proibida.
Nesse panorama, os ambientes de proteção da pessoa humana eram diversos e
pouco se comunicavam: no campo público, as declarações de direito reconheciam
a igualdade formal e conferiam ao homem certas liberdades em relação ao Estado;
no campo privado, imperava o voluntarismo da autonomia da vontade.
Após a primeira guerra, com as misérias sociais e o capitalismo impiedoso, a
comunidade mundial abre os olhos para o dever do Estado, não apenas de assegurar
os direitos individuais, mas de garantir também as exigências da sociedade enquanto
coletividade, expressas nos direitos sociais. Sobre a importância do reconhecimento
dos direitos sociais, Alfredo Baracho (1986, p. 46) af‌irma que “a vida econômica
deve ser organizada conforme os princípios da justiça, objetivando garantir a todos
uma existência digna”.
Nesse mesmo sentido, Fábio Comparato (2019)atribui ao socialismo o lega-
do do reconhecimento dos direitos humanos de caráter econômico, que possuem
como titular grupos sociais dominados pela exploração e pela fome advindos do
capitalismo de produção. Nesse momento histórico surgem os direitos sociais, e
com eles, a internacionalização dos direitos humanos. A fase, porém, dura pouco.
O totalitarismo alemão e italiano, regime de violência e opressão com completo
desrespeito aos direitos individuais, sociais e políticos, impuseram um retrocesso
à ordem mundial.
A partir da segunda guerra mundial, quando restou clara a necessidade de prote-
ção do homem diante de um Estado capaz de atrocidades, os direitos de personalidade
ganham enorme força. A comunidade mundial buscava um núcleo de direitos humanos
que vislumbrasse a proteção integral da pessoa humana, surgindo daí a fundamentação
histórica dos direitos da personalidade consagrados nas constituições democráticas
do pós-guerra (SÁ; MOUREIRA, 2015). Em 1948, surge a Declaração Universal dos
Direitos Humanos e outras convenções que def‌inem esse núcleo fundamental e pro-
piciam educação em direitos humanos (MAGALHÃES, 2000).
Neste contexto, a doutrina identif‌icava nos direitos da personalidade a salva-
guarda de um espaço mínimo que propiciasse as condições ao pleno desenvolvimento
da pessoa, âmbito reservado aos direitos que constituem o núcleo mais profundo
da personalidade, e resguardasse a dignidade da pessoa humana preservando-a dos
atentados por parte de outros indivíduos (ASCENSÃO, 1996).
Gustavo Tepedino (2001) também ressalta essa característica dupla-face dos
direitos da personalidade, que protegem a pessoa humana tanto sob o enfoque
constitucional, quanto sob o enfoque privado. Nesse mesmo sentido, Maria de Fá-
tima Freire de Sá (2001), analisa que, anteriormente, o direito público era o único
responsável pela tutela integral do ser humano, porém, com a evolução do direito
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