Princípio da dignidade da pessoa humana e seu conteúdo autônomo nas decisões de fim de vida

AutorSálvia de Souza Haddad
Páginas1-24
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PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA E SEU CONTEÚDO
AUTÔNOMO NAS DECISÕES
DE FIM DE VIDA
1.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: EVOLUÇÃO
CONCEITUAL, CONTEÚDO E DIMENSÕES
A Constituição Federal, em seu art. 1.º, III, destaca o princípio da dignidade
da pessoa humana como um valor constitucional. De forma inédita, assinala os
fundamentais objetivos do Estado brasileiro para efetivar, na prática, esse princípio
fundante da República, se inferindo daí a preocupação acentuada do constituinte
em assegurá-lo de forma primordial (PIOVESAN; DIAS, 2017).
Antes de adentrar no tema deste capítulo, importa relembrar que todo conceito
jurídico tem uma história, e que para apreender seu sentido se faz necessário ras-
trear sua evolução até a formação do conceito jurídico contemporâneo. E não foi
diferente com a dignidade humana que, ao longo dos tempos, sofreu importantes
transformações e resulta do encontro de várias doutrinas construídas na cultura
ocidental (BITTAR, 2010).
No pensamento f‌ilosóf‌ico da antiguidade, a dignidade do ser humano era
atrelada à um conceito político, presente ou não a depender do pertencimento
do indivíduo a certas classes sociais tidas como superiores, de forma que não era
considerada atributo de todas as pessoas e se falava em quantif‌icação da dignidade:
existiam pessoas com maior, menor ou nenhuma dignidade, a exemplo dos escravos.
No mundo greco-romano, a dignidade assume dupla signif‌icação: aquela ina-
ta, e por isso mesmo, inerente à condição humana, existente pelo simples fato de
ser homem e estar sujeitos às mesmas leis naturais; e a adquirida, ou sociopolítica,
oriunda da posição social e política ocupada pelo indivíduo (BARROSO, 2016).
A inf‌luência da religião judaico-cristã na conceituação inicial é inegável. Passa-
gens do antigo e novo testamento explicitam de forma clara a posição de relevância
do homem no contexto da Criação. As menções feitas por Fábio Konder Comparato
(2019, p. 31) à textos bíblicos comprovam a posição de destaque dada ao homem:
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“a criatura humana ocupa uma posição eminente na ordem da criação, Deus lhe
deu ‘poder sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as
feras e todos os répteis que rastejam sobre a Terra (Gênesis 1, 26)”. Conceitos como
a igualdade e a solidariedade também eram tratados nesses textos e foram indispen-
sáveis na composição no sentido atual (SARLET, 2019).
Sob essa inf‌luência, por um longo período, a ideia de dignif‌icação da natureza
humana veio de sua semelhança com Deus. É do Papa Leão Magno a justif‌icativa
da dignidade humana, sustentada pelo fato de que Deus os criou à sua imagem e
semelhança, ressaltando, ainda, que Deus, ao tornar-se homem por Jesus, dignif‌icou
a natureza humana (SANTOS, 2007).
A despeito de se sustentar por toda a idade média a concepção de dignidade
vinda da inspiração cristã, o f‌ilósofo Boécio traz um novo conceito de pessoa, vin-
culando a dignidade à capacidade de autodeterminação, à possibilidade do homem,
livre por natureza, ser senhor de sua própria vontade (SARLET, 2019).
Santo Agostinho (2011), além de exaltar a inteligência dada ao homem por
Deus, inf‌irma que sua superioridade permite a elevação acima dos animais da terra,
das águas e do ar, desprovidos de um espírito deste gênero. Em suas Conf‌issões,
explora a riqueza espiritual e intelectual presente no interior do indivíduo. Já em
São Tomás de Aquino (1978), antecipando o que viria em Kant, a superioridade do
homem advinha de sua racionalidade e do livre arbítrio, tendo o f‌ilósofo cristão feito
referência, inclusive, à expressão ‘dignitas humana’.
Também Picco della Mirandola (2001), nos apresenta a dignidade do homem
baseada em sua superioridade perante os demais seres, posicionando-a como ex-
pressão do uso do arbítrio próprio e da capacidade de modelar-se pela liberdade de
escolha. Para o humanista do Renascimento, o homem possui natureza incompleta,
que seria preenchida pelas decisões tomadas no uso de seu livre arbítrio (ZILLES,
2012).
Já neste período se percebe que o conceito vai se afastando do paradigma
religioso para se aproximar, gradativamente, da concepção de que o ser humano
é responsável por sua própria vida, pelos valores adotados e objetivos elegidos; o
homem como motor propulsor do caminhar de sua existência, noção de dignidade
que representou o embrião da concepção contemporânea notada nos modernos
documentos de direitos humanos (ZILLES, 2012).
Importantes contribuições foram dadas pelos f‌ilósofos contratualistas do século
XVIII, agregando à ideia de dignidade, uma formulação racional que trazia a liber-
dade moral do homem como seu traço distintivo. O Iluminismo também traz um
elemento novo ao conceito de dignidade, o igualitarismo, que ressoou fortemente
nos ideais da Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, no histórico
artigo 1.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: “Todos os
homens nascem livres e iguais em direito” (SARMENTO, 2016).
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