O sistema autopoiético do direito e suas implicações em relação à segurança jurídica

AutorFabiana del Padre Tomé
CargoMestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora no Curso de Mestrado da PUC/SP. Professora nos Cursos de Especialização em Direito Tributário da PUC/SP e do IBET. Advogada
Páginas86-94

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1. Considerações introdutórias

Muito se tem discutido a respeito da segurança jurídica, sendo utilizados os mais variados argumentos para tentar delimitá-la. Pretendemos, neste trabalho, contribuir para o desenvolvimento de tão relevante tema, fazendo-o pela perspectiva da estrutura do sistema do direito positivo.

Tomamos como ponto de partida o posicionamento segundo o qual, para movimentar-se em direção à maior proximidade das condutas intersubjetivas, as normas jurídicas precisam passar pelo chamado "processo de positivação". O fenômeno da percussão jurídica demanda a existência de um fato que, subsumindo-se à hipótese normativa tributária, implique o surgimento de vínculo obrigacional. É a fenomeno-logia da incidência. Referida operação, todavia, não se realiza sozinha: é preciso que um ser humano promova a subsunção e a implicação que o preceito da norma geral e abstrata determina. Na qualidade de operações lógicas, subsunção e implicação demandam a presença humana. Daí a visão antropocêntrica, requerendo o homem como elemento intercalar, construindo, a partir de normas gerais e abstratas, outras normas, gerais ou individuais, abstratas ou concretas.

Essa movimentação das estruturas do direito exige a certificação da ocorrência do fato conotativamente previsto na hipótese da norma que se pretende aplicar. Mas, para que o relato ingresse no universo do direito, constituindo fato jurídico, é preciso que seja enunciado em linguagem competente.

Discorrer sobre o princípio da segurança jurídica requer, portanto, que sejam enfrentadas questões concernentes à composição do sistema jurídico. Por isso, considerando o caráter sistemático do ordenamento, passaremos a examinar seus elementos e estrutura, objetivando compreen-

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der como se opera sua transformação e, desse modo, identificar o modo pelo qual um fato qualquer, de natureza social, política, religiosa, econômica etc., ingressa no sistema jurídico. Adiantamos que esse fato só passará a integrar o ordenamento se constituído em linguagem apropriada, ou seja, se juridicizado, sendo relatado pela linguagem do direito positivo. Nesse caso, porém, não há mais que falar em fato social, político, religioso ou econômico: uma vez integrado ao sistema do direito positivo, ter-se-á "fato jurídico", desencadeando as conseqüências prescritas pelo próprio ordenamento.

Com isso, pretendemos demonstrar que apenas se observado o procedimento juridicamente prescrito, com a devida constituição dos fatos por meio de linguagem reconhecida pelo ordenamento, é que poderemos falar em observância ao primado da segurança jurídica. Isso elimina qualquer possibilidade de atribuir efeitos jurídicos a fatos econômicos ou políticos, por exemplo, já que nesse caso ter-se-ia extrapolação dos limites do direito posto, dando margem ao estabelecimento de vínculos não autorizados pela estrutura jurídica.

2. O direito visto como sistema comunicacional

Dentro da rede de comunicações que é o sistema social, identificamos subsistemas compostos por comunicações diferenciadas entre si, como é o caso do subsistema do direito. Este se apresenta como um conjunto comunicacional peculiar e com função específica, sendo inadmissível transitar livremente entre o sistema jurídico e os demais sistemas verificados no interior do macrossistema da sociedade, como o econômico, o político e o religioso. Observa Celso Fernandes Campilongo1 que, "na rede de comunicações da sociedade, o di-reito se especializa na produção de um tipo particular de comunicação que procura garantir expectativas de comportamentos assentadas em normas jurídicas". Construir uma teoria jurídica implica, portanto, elaborar teoria comunicacional, respeitadas as especificidades do direito positivo relativamente aos demais subsistemas sociais.

A concepção da teoria comunicacional do direito tem como premissa que o direito positivo se apresenta na forma de um sistema de comunicação. Direito é linguagem, pois é a linguagem que constitui as normas jurídicas. Essas normas jurídicas, por sua vez, nada mais são que resultados de atos de fala, expressos por palavras e inseridos no ordenamento por veículos introdutores, apresentando as três dimensões sígnicas: suporte físico, significado e significação.2

Com base na teoria da sociedade de Niklas Luhmann,3 tomamos o direito como um sistema comunicativo funcionalmente diferenciado e dotado de programas e código próprios, apresentando uma forma especial de abertura e fechamento com relação ao ambiente. Não obstante a sociedade se apresente como um grande sistema, compreendendo todas as formas possíveis de comunicação, na modernidade encontra-se dividida em subsistemas parciais, dos quais são exemplos os sistemas político, jurídico e econômico. Esses sistemas possuem códigos de comunicação próprios e específicas operações de reprodução de elementos, que lhes conferem fechamento operativo e também uma forma específica de abertura cognitiva do ambiente. Veja-

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mos, no tópico subseqüente, como isso se aplica ao sistema do direito positivo.

3. O direito como sistema autopoiético

A teoria da autopoiese foi desenvolvida, inicialmente, por Humberto Maturana e Francisco Varella, biólogos que, numa visão sistêmica dos seres vivos, divisaram a simultaneidade de fechamento organizacional e abertura para informações advindas do ambiente. Dada a operatividade dessa teoria, passou a ser aplicada ao estudo dos sistemas sociais, sendo primorosamente desenvolvida por Niklas Luhmann,4 tomando por sistema autopoiético aquele que produz sua própria organização, conservando a identidade do sistema e, ao mesmo tempo, fazendo-o sofrer transformações indispensáveis à sua sobrevivência. De forma simplificada, podemos dizer que autopoiético é o sistema que reproduz seus elementos valendo-se de seus próprios componentes, por meio de operações internas.

A peculiaridade do sistema autopoiético confere-lhe as seguintes características: (i) autonomia, sendo capaz de subordinar toda a mudança de modo que permaneça sua auto-organização; (ii) identidade, pois mantém sua identidade em relação ao ambiente, diferenciando-se deste ao determinar o que é e o que não é próprio ao sistema; (iii) não possui "inputs" e "out-puts", significando que o ambiente não influi diretamente no sistema autopoiético, ou seja, não é o ambiente que determina suas alterações, pois quaisquer mudanças decorrem da própria estrutura sistêmica que processa as informações vindas do ambiente.

A auto-referencialidade também se apresenta como pressuposto da autoprodu-ção do sistema, pois, para que este possa se autogerar, isto é, substituir seus componentes por outros, é necessário que haja elementos que tratem de elementos. No caso do sistema social, têm-se atos comunicativos cujo conteúdo dispõe sobre a geração de outros atos comunicativos, enquanto no sistema jurídico verificam-se normas que prescrevem a produção de outras normas jurídicas. Para tanto, o sistema tem que olhar para si próprio, precisa falar sobre si mesmo, nessa citada auto-referencialidade.

A clausura organizacional, caracteri-zadora da autopoiese do sistema, decorre exatamente do fato de que a informação advinda do ambiente é processada no interior do sistema, só ingressando nesse sistema porque ele assim determina e na forma por ele estabelecida. A clausura não significa, portanto, que o sistema seja isolado do ambiente, mas que seja autônomo, que as mensagens enviadas pelo ambiente só ingressem no sistema quando processadas por ele, segundo seus critérios. Por isso, são abertos cognitivamente.

Em relação ao sistema atuam as mais diversas determinações...

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