A bactéria da desconfiança: da inépcia à perplexidade

AutorJoão Guerra
CargoDoutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Lisboa, especialista em sociologia ambiental, pesquisador e professor no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa)
Páginas117-139
DOI: http://dx.doi.org/10.5007/2175-7984.2020v19n44p117
117117 – 139
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Bactéria da desconfiança:
inépcia e perplexidade na
gestão de um surto da
doença dos legionários1
João Guerra2
Resumo
O surto da doença dos legionários, ocorrido no município de Vila Franca de Xira, caracterizou-se
por controvérsias públicas e científicas, pela desconfiança nos sistemas de monitorização e por
um processo judicial moroso, que aprofundaram sentimentos de desconfiança na comunidade.
Neste artigo, avança-se com alguns resultados de um workshop participativo que juntou cerca
de três dezenas de pessoas para refletir sobre as suas consequências. Do processo deliberativo,
pode concluir-se que as vulnerabilidades ambientais se juntam a vulnerabilidades sociais pré-
-existentes, num intrincado social difícil de destrinçar, mas que parece ter sido delimitado por
meios de monitorização e de definição de risco pouco adaptados à realidade. Conclui-se que as
prevalecentes “relações de definição do risco” deram origem a um divórcio claro entre conhe-
cimento técnico e leigo e subverteram a lógica sistémica, defendida, mas não praticada, pela
sustentabilidade e pela convenção de Aarhus.
Palavras-chave: Doença dos legionários. Sustentabilidade. Participação pública. Desconfiança.
Vulnerabilidades.
1 O autor agradece à Associação “Os Amigos do Forte”, que colaborou com empenho e dedicação na organi-
zação desse workshop participativo, bem como nas sessões de discussão de resultados subsequentes. Essa
auscultação que se procurou inclusiva e clarificadora, foi inserida num projeto de pesquisa mais vasto, financia-
do com uma bolsa de pós-doutoramento (SFRH/BPD/78885/2011) pela Fundação para a Ciência e Tecnologia
(FCT/Portugal).
2 Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade de Lisboa, especialista em sociologia ambiental, pesquisador
e professor no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa).
Bactéria da desconfiança: inépcia e perplexidade na gestão de um surto da doença dos legionários | João Guerra
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Nota introdutória
A doença dos legionários foi identicada pela primeira vez em 1976, en-
tre os participantes da 58ª Convenção Anual da Legião Americana, realizada
em Filadéla, nos Estados Unidos. O nome por que é conhecida a bactéria
que dá origem à doença e que, muitas vezes, identica-a – legionella – tem
origem nesse surto que, na altura, infetou 221 delegados e causou 34 óbitos.
Se deixada no seu ecossistema natural, a legionella dicilmente representa
perigo para a saúde humana, mas, devido à disseminação de sistemas e reser-
vatórios hídricos e fontes de pulverização articiais nem sempre devidamen-
te mantidos (e.g., fontes decorativas, sistemas de ar-condicionado), passou a
multiplicar-se com maior facilidade e a causar uma doença multissistémica
de localização predominantemente pulmonar, quando um hospedeiro sus-
cetível inala aerossóis que contenham um inóculo signicativo de estirpes
potencialmente virulentas (MARQUES, 2005).
As diculdades de diagnóstico e respetivo recenseamento de casos po-
sitivos mantiveram, no entanto, a doença sob um fraco escrutínio público.
Em Portugal, a doença só ganhou visibilidade mediática a partir do surto,
cujas consequências sociais aqui procuramos escrutinar: o surto de legio-
nella de Vila Franca de Xira (2014), conhecido como um dos mais graves
já recenseados em todo o mundo. Apesar de tal grandeza e notoriedade
social e mediática, cinco anos volvidos, quando este texto acabava de ser
revisto (novembro de 2019), as notícias não eram animadoras para a maior
parte dos afetados: das 375 pessoas contaminadas (Grupo de Trabalho para
o Surto de Legionella de Vila Franca de Xira, 2014), apenas 73 constavam
da acusação do Ministério Público (MP). As restantes caram de fora por-
que só terá sido possível associar a causa (i.e., estirpe da bactéria encontra-
da numa torre de refrigeração da fábrica da Adubos de Portugal – ADP) ao
efeito (i.e., indivíduos afetados pela doença dos legionários) em menos de
20% dos casos inicialmente assinalados. Essa evidente injustiça aconteceu
apesar de a mesma acusação do MP – com base em informação fornecida
pelos peritos ligados ao Grupo de Trabalho referido – não ter deixado dúvi-
das de que o surto foi causado por “manifesta falta de cuidado” e incumpri-
mento de “um conjunto de regras e técnicas na conservação/manutenção
de equipamentos fabris.

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