Barroco: A tempestade na Biblioteca

AutorDiego Cervelin
CargoGraduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas167-183
BARROCO: A TEMPESTADE NA BIBLIOTECA
OU
O GRANDE TEATRO DA FUNDAÇÃO
Diego Cervelin1
Desde que Heinrich Wölfflin, nos últimos vinte anos do século XIX, se
interessou por trazer à tona as formas arquitetônicas do século XVII conferindo-
lhes caráter autônomo de estilo histórico determinável, não é nenhuma
novidade que os estudos sobre o barroco pudessem polarizar – quase sempre
em um tom colérico – os pesquisadores da arte e da cultura. Em terras do
Brasil, não chega a ser de todo descabido recordar a severíssima crítica
operada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. O livro, que
pretende detectar a avalanche de equívocos que teria povoado o passado
nacional com as vistas voltadas para a concretização de um projeto de
emancipação e progresso na linha da história brasileira, apresenta em seu
quarto capítulo uma impugnação explícita ao passado colonial. E isso na
medida em que Holanda utiliza em tom diferido a batalha agônica entre
ladrilhadores e semeadores a que se referia Padre Antônio Vieira no Sermão
da Sexagésima2.
A questão que ocupa o fundo deste cenário crítico mais específico não
ultrapassa, entretanto, o pensamento de um ponto de apoio ou de um porto
1 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Este ensaio surgiu como
decorrência do projeto de iniciação científica PIBIC/CNPq intitulado A pervivência do barroco
na cultura brasileira – leituras da revista Barroco entre 1969 e 1978, desenvolvido durante o
biênio de 2006 e 2007, no Núcleo de Estudos Literários e Culturais (NELIC/CCE/UFSC), sob a
orientação da Profª. Drª. Susana Célia Leandro Scramim.
2 Enquanto Vieira se esmerava em apresentar a supremacia do poder salvador dos
semeadores da palavra de Deus e impugnava o discurso daqueles que, preocupando-se
meramente com a beleza das sentenças utilizadas, agiam conforme ladrilhadores, Sérgio
Buarque de Holanda invertia de forma inexorável a fórmula valorativa. Identificava, então, o
semeador ao passado agrário do Brasil e à falta de projeto definido para a ocupação das terras
da colônia por parte dos portugueses. Os ladrilhadores, por outro lado, segundo o autor de
Raízes do Brasil, estariam mais próximos dos espanhóis e, longe de figurarem como estetas
inconse-qüentes, teriam demonstrado maior acuidade técnica em sua atividade colonizadora.
Não causa nenhum estupor que Sérgio Buarque de Holanda se refira diretamente aos planos
urbanísticos geométricos daquelas cidades criadas na América espanhola. A impugnação do
status quo colonial não se traduzia, porém, como completo desapreço pelo barroco. Muito pelo
contrário, como se pode depreender da admiração que Sérgio Buarque de Holanda exala em
“Notas sobre o barroco”, publicado no livro Tentativas de Mitologia, da década de 50.
Boletim de Pesquisa – NELIC V. 8, Nº 12 / 13 (2008)
seguro como sendo a mais pura demonstração de uma necessidade na ordem
do dia. Tratava-se, nesse sentido, de tentar produzir a materialidade de que
dependia a metafísica da identidade e não menos de pensar a comunidade da
Nação como corpo um formado por muitas cabeças – omnes et singulatim
como Michel Foucault formularia em seu curso no Collège de France durante
1977 e 1978. Ou ainda, em outros termos: refletindo sobre o passado colonial e
procurando seus possíveis equívocos, tratar-se-ia de traçar as linhas e os
limites do programa a ser adotado para a constituição do Uno enquanto Nação,
aquele bloco destinado percorrer os trilhos do desenvolvimento. O passado
colonial, então compreendido como signo da servidão e do atraso, deveria
ceder seu espaço na cena interpretativa nacional para outro momento capaz de
ser apreendido como demonstração das bases fundadoras da autonomia
brasílica.
No campo mais específico da construção historiográfica da literatura da
Terra dos Papagaios, o trabalho de Antônio Cândido em sua Formação da
Literatura Brasileira também não deixou de desempenhar um corte cirúrgico em
relação ao barroco. Isto é: foi extirpado como aquele corpo expúreo que só
poderia atrapalhar o funcionamento da máquina identitária. Eis que o trabalho
literário dos séculos XVII e XVIII, podia pensar Cândido no afã de rostificar os
contornos dos processos formadores da Nação, não foi pródigo em estabelecer
uma efetiva relação entre escritores, obras e leitores, não demonstrou a
capacidade de estabelecer qualquer sistema e, sob uma maquiagem
tropicalizada, tão somente reproduziu as formas metropolitanas em vez de
servir para construir algo efetivamente autóctone. Esses argumentos, como já
não é novidade, deveriam enfurecer um entusiasta colérico como Haroldo de
Campos, que, desde os textos recolhidos em A arte no horizonte do provável,
procurava resgatar o potencial de novidade existente na linguagem barroca
especialmente através de sua proposta de leitura sincrônica. Difícil seria negar,
por outro lado, que os resultados de sua ira hercúlea haveriam de tomar uma
forma mais contundente, por exemplo, no ensaio apresentado em Portugal a
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