Bioética na sociedade multicultural

AutorSalete Oro Boff
CargoDoutora em Direito pela UNISINOS, Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da URI, Cursos de Mestrado e Especialização e da Graduação. Líder do Grupo de Pesquisa Novos Direitos na Sociedade Globalizada, linha de pesquisa - Direito e Multiculturalismo. Pesquisadora do CNPq.
Páginas273-289

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Considerações iniciais

É da natureza do homem buscar a inovação e tirar proveito dela. As novas criações estão subordinadas ao contexto de valores consagrados pela sociedade. Como forma de orientar as escolhas práticas a partir da diversidade cultural, partindoPage 274de valores sociais e atrelada a uma base principiológica, a bioética assume papel fundamental na atualidade, imprimindo preocupação com a manutenção do homem como sujeito, evitando que se torne ‘objeto’ (mercadoria) em meio ao progresso biotecnológico.

1 Bioética: conceito e pretexto

A2 bioética3 pode ser definida como o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências sociais, a partir de valores e princípios morais. Justificase como marco mínimo para um acordo entre indivíduos ligados por uma estrutura comum, permitindo resolver conflitos4 e preocupa-se em “estabelecer critérios de orientação para a invenção e a utilização de descobertas científicas e tecnológicas, relativas ao corpo, às funções humanas ou órgãos e seus elementos e que, em princípio, devam trazer benefícios para toda a humanidade.”5

Além disso, a bioética ocupa-se dos campos “da deontologia e da ética médicas, centradas em problemas muitas vezes aparentados com a filosofia dos direitos do homem”. Abrange as Ciências Naturais e Humanas, o Direito, a Teologia e a Filosofia e, ao contrário do caráter ‘dogmático, totalitário’, ‘das verdades universais’, manifesta a multiplicidade irredutível da sociedade.6 Procura o “reconocimiento de la pluralidad de opciones morales que caracteriza a las sociedades actuales, y en propugnar la necesidad de establecer un mínimo marco de acuerdo por medio del cual individuos pertencien a las ‘comunidades morales’.”7 Portanto, busca a convergência amistosa entre o ‘saber simbólico da ética e o saber tecnocientífico’8 : está para a ética da ciência, que “exprime o código moral da pesquisa científica, as leis próprias da investigação que devem ser respeitadas por seus cultores se desejam fazer um trabalho científico.”9 Seu objeto material é “comum a todas as ciências que estudam a vida”.

Na análise de Hans Jonas, ‘a bioética é uma nova ética’, entendida como uma ética aplicada a uma área especializada de problemas, pois as atuais capacidades de agir exigem “novas regras éticas e talvez também uma nova ética”, que saliente aPage 275objetividade dos valores e da verdade.10 Nessa senda, não são necessários novos princípios éticos básicos, mas criar uma forma inovadora de aplicação destes: “uma ética da e pela ciência e a técnica deve saber indicar critérios e pontos de referência pelo sentido do agir científico e técnico e ‘para realizar o progresso humano, não contra ou prescindindo da ciência e da técnica, mas através e com os recursos científicos e técnicos.”11

Assim, entre as características da bioética estão a reflexão (juízo crítico de valores); o pluralismo, a publicidade12 , a multi e a transdisciplinariedade e a preocupação com os avanços científicos.13 Essas marcas vão ao encontro da descentralização do poder na área das pesquisas científicas, situando a seara da bioética “como lugar apropriado para o debate e as discussões sobre as vantagens e as desvantagens que surgem nas zonas de fronteiras das ciências biológicas e médicas relacionadas a questões morais(...)”.14

Daí sua missão é orientar o desenvolvimento da técnica neste momento de avanços acelerados.15 É também o que propõe Habermas, quando apresenta a passagem da razão instrumental, caracterizada pela instrumentalização do conhecimento pelo poder, para uma razão comunicativa, “responsável pela criação de um espaço público no qual o diálogo, como condição de possibilidade, deve permitir a construção de uma sociedade eticamente responsável”16 . Corrobora Vicente de Paulo Barretto17 argumentando que a bioética pretende acompanhar o avanço científico, “no sentido da construção de um discurso ético, dentro do qual possam encaminhar-se, e achar solução, os conflitos que ocorrem em virtude das novas relações sociais e econômicas, nascidas dessas descobertas e até então desconhecidas pelo ser humano.”

Por meio de normas e princípios, a bioética preocupa-se em guiar e limitar o desenvolvimento da sociedade tecnológica, primando para que os avanços não se voltem contra a humanidade. Conseqüentemente, a bioética defende a garantia da humanização técnico-científico, diz respeito a problemas de justiça, pois só é bom, de acordo com a bioética, o que é bom para todos.18

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2 Dimensões da bioética

A bioética insere-se na ambiência da pluralidade e pode ser analisada a partir das concepções secular, principialista, confessional e fenomenológica.19 Na concepção secular (Engelhardt), a bioética não se detém a princípios absolutos, mas estaria atrelada à cultura da comunidade moral, tomando em conta o pluralismo ético. A concepção confessional, vinculada a fundamentos cristãos, destaca a dignidade e o valor da pessoa, desde a concepção. A bioética principialista (Beauchamp e Childress) emerge em razão dos procedimentos utilizados nas experiências com seres humanos realizadas durante e após o período da Segunda Guerra Mundial. Por meio de Declarações Internacionais, procura estabelecer princípios gerais (autonomia, beneficência e justiça) que norteiam as pesquisas científicas envolvendo humanos. A concepção fenomenológica da bioética, por sua vez, considera que a pessoa está em constante construção, em razão da conjugação de valores morais. Em que pese aparentemente distintas, essas concepções apresentam convergência quanto à questão central: o respeito à pessoa e ao pluralismo das culturas.

Por isso, as bases intelectuais dessa área, segundo H. Tristam Engelhardt Jr20 , têm, nos princípios (mesmo que não absolutos), um dos recursos para ajudar “a fechar o abismo entre aqueles que compartilham uma visão moral, mas estão separados por uma reconstrução teórica dessa visão”, servindo

1) para resolver controvérsias morais entre indivíduos com semelhantes sentimentos morais, mas diferentes abordagens teóricas, 2) para explorar e comparar os modos em que diferentes teorias reconstroem o mesmo conjunto ou conjuntos semelhantes de sentimentos e intuições morais, 3) para determinar diferenças entre visões morais e suas implicações para a bioética e a política de assistência à saúde, mas não para resolver controvérsias entre indivíduos que não compartilham a mesma visão ou sentimento moral.

Eleva-se como mérito da bioética a capacidade de “sistematizar (ou ao menos tentar) o tratamento de questões diversas, mas que devem guardar entre si, necessariamente, princípios e fins comuns”.21 Sem dúvida, os princípios bioéticos assumem o papel de preencher a “lacuna ou vazio existente entre a esfera ética e asPage 277normas jurídicas constitutivas do Biodireito”22 e são efetivados nos direitos humanos. Surgem como modo de proteger o indivíduo, estabelecendo parâmetros mínimos a serem observados pelos pesquisadores, médicos entre outros, e esclarecem porque se deve agir de tal maneira, constituindo “uma espécie de código de ética profissional para cientistas e pesquisadores”, que acompanha a rápida evolução da pesquisa e da engenharia genéticas, consideradas, em muitos aspectos, “como uma ameaça à inviolabilidade da pessoa humana.”23

Nesse campo, ganha espaço a busca de consensos, a partir da interação da comunicação, envolvendo a complexidade das relações que se estabelecem e visando exprimir objetivos comuns. Os problemas da vida social pluralista são passíveis de revisão (renegociáveis), constituindo-se em ambiente aberto de discussão24 , por meio da busca do equilíbrio e da adequação de decisões baseadas em princípios. A observância da ética ligada à vida serve para justificar as opções e decisões tomadas, permite a direção de respostas a perguntas complexas, que envolvem valores e interesses conflitantes.25

Destaca Habermas26 que somente argumentos sólidos podem ser considerados capazes de resolver problemas morais. Assim, os princípios da bioética são fontes de obrigações e direitos morais, expressam raízes da vida moral e suas determinações são “obrigatórias por si mesmas.”27 Delimitar pontos de vista comuns por meio da racionalidade e da argumentação, é papel a ser desempenhado por uma base principiológica, pelo que se poderão considerar os princípios da bioética como matrizes para o desenvolvimento da (bio)tecnologia.

A bioética principialista teve seu nascedouro no resultado do Relatório Belmont28 , publicado em 1978, pelos Estados Unidos, o qual estabeleceu, como princípios, a autonomia, a beneficência e a justiça.29 Esses princípios são baseados no utilitarismo, cuja premissa é “maximizar o bem global”30 e possuem dimensão universal como “fundadores de uma ética e de um biodireito na sociedade pluralista e democrática”31 e representativos dos valores dos direitos humanos.

O princípio da autonomia surge com o reconhecimento da dignidade da pessoa humana e sua liberdade de escolha.32 . A autonomia traduz-se na capacidade de o sujeito autolegislar-se, “ele não recebe normas éticas de fora, da natureza ou da divindade, mas ele dá a si mesmo sua norma ética com a exigência que sejaPage 278universalizável. Então é o ser humano autônomo que prescreve a si mesmo o imperativo categórico.” E, por ‘ser digno’, “a autonomia individual provoca de imediato e prioritariamente o respeito à pessoa, o direito à autodeterminação, à vida, à saúde e à confidencialidade.”33

Assim, o pesquisador ou quem esteja envolvido diretamente no processo, não possui o poder de decidir pelo paciente. Cabe à pessoa, no exercício de sua autonomia e responsabilidade, decidir as medidas que mais lhe convierem, com base em informações tanto sobre o diagnóstico, quanto sobre a...

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