Capim grosso - Vara crime, júri, execuções penais, infância e juventude

Data de publicação09 Julho 2021
Número da edição2896
SeçãoCADERNO 3 - ENTRÂNCIA INTERMEDIÁRIA
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
VARA CRIMINAL DE CAPIM GROSSO
INTIMAÇÃO

8001382-89.2021.8.05.0049 Termo Circunstanciado
Jurisdição: Capim Grosso
Autor Do Fato: Elder Santos
Autoridade: Policia Civil Da Bahia
Vitima: A Sociedade

Intimação:


Trata-se de Termo Circunstanciado de Ocorrência lavrado pela Autoridade Policial do Município de Quibabeira, sob o nº 009/2021, em desfavor do agente ELDER SANTOS, pela suposta prática de conduta(s) capitulada(s) nos art. 28, da Lei 11.343/06. Constam do caderno policial, entre outros, a descrição do fato, a qualificação do agente, a qualificação do condutor, o auto de exibição e apreensão e o compromisso do agente.

Remetido ao Ministério Público, o Promotor de Justiça requereu a designação de audiência para ofertar transação penal, corroborando o entendimento da Autoridade Policial de que a conduta se enquadraria na posse/porte de entorpecentes para consumo pessoal.

É o sucinto relatório. Decido:

Da análise dos autos, vê-se que o auto de exibição e apreensão aponta que, em posse do agente, foram apreendidos as substâncias descritas no laudo nº 2021 16 PC 000386-01-02, juntado aos autos as fls. 16 do id 100384419. Nesse caso, o art. 28 da Lei de Tóxicos tipifica penalmente a conduta daquele que guarda ou traz consigo drogas para consumo pessoal:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente (grifos nossos).

A apreensão da droga, conforme demonstrado no auto de exibição e apreensão, na estirpe/quantitativo apresentados, conjugados com o interrogatório do agente perante a Autoridade Policial, conduzem acertadamente ao enquadramento da conduta, em tese, ao art. 28 da Lei de Tóxicos acima transcrito. No entanto, tal dispositivo é, a nosso sentir, inconstitucional, por violar os direitos constitucionais da igualdade, da liberdade, da intimidade e da vida privada, bem como os princípios da proporcionalidade e da lesividade ou ofensividade, que norteiam o Direito Penal moderno. Com efeito, a Constituição Federal de 1988 assegura, no rol de seus direitos e garantias fundamentais:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[…]

VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença […];

[…]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada [...];

[…]

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

[…]

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

[…] (grifos nossos).

Do cotejo entre o art. 28 da Lei 11.343/2006 e o art. 5º da Constituição Federal, percebe-se que a criminalização da posse de certas substâncias, voltadas unicamente para o consumo pessoal, agride a liberdade do indivíduo adulto de determinar-se de acordo com suas próprias convicções e de dispor autonomamente do próprio corpo, inclusive ingerindo os produtos que desejar, ainda que eventualmente prejudiciais à sua saúde. Tanto é assim que a lei penal não se encontra autorizada a punir condutas que, no exercício da liberdade individual, agridam somente o corpo ou a imagem do próprio indivíduo. Nesse sentido, não são puníveis a prostituição, a tentativa de suicídio, a automutilação, a embriaguez, a autodifamação etc. Como aponta Salo de Carvalho (in A Política Criminal de Drogas no Brasil, Ed. Saraiva, 7. ed, pp. 373/374), […] nenhuma norma penal criminalizadora será legítima se intervier nas opções pessoais ou impuser padrões de comportamento que reforçam concepções morais. A secularização do direito e do processo penal, fruto da recepção constitucional dos valores do pluralismo, da tolerância e do respeito à diversidade, blinda o indivíduo de intervenções indevidas na esfera de sua interioridade. Assim, está garantido ao sujeito a possibilidade de plena resolução sobre os seus atos (autonomia), desde que sua conduta exterior não afete (dano) ou coloque em risco factível (perigo concreto) bens jurídicos de terceiros. Apenas nesses casos (dano ou perigo concreto) haveria intervenção penal legítima.

Também se verifica ofensa ao princípio da igualdade, eis que a lei penal, mediada pela Portaria da ANVISA, estabelece distinção de tratamento (lícito ou ilícito) para usuários de substâncias igualmente aptas a alterar a consciência e com potencialidade de gerar dependência física ou psíquica. Assim, através de uma seleção arbitrariamente fundada em critérios pouco científicos, o consumidor de maconha, crack, cocaína, ecstasy ou lsd vê-se proibido pela lei penal de portar pequenas quantidades de tais produtos, ao passo que o usuário de álcool ou tabaco, também danosos, em maior ou menor escala, à sua saúde, possui amparo legal para adquirir, portar e consumir estas substâncias.

Deste modo, cremos que ou o legislador proíbe a utilização de todos os tipos de estupefacientes que cientificamente comprovados prejudicam de maneira mais ou menos uniforme a saúde, ou permite o uso e consumo de todos aqueles que, de uma maneira ou outra, provocam em quem os utiliza situações em certo grau equivalentes. O que não pode ocorrer, desde uma perspectiva penal, é uma diversidade de tratamento que compromete seriamente esse princípio constitucional (SANTOS, Lycurgo de Castro. Tóxicos: algumas considerações penais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, 05, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, pp. 123/124).

Não bastasse, a criminalização das condutas relativas ao uso de entorpecentes é ainda injustificável por não ofender nem colocar em perigo (concreto) bens jurídicos de terceiros. Trata-se de crime sem vítima, não se podendo admitir a tese segundo a qual o porte de drogas para consumo pessoal agrediria a saúde pública. Primeiramente, “é evidente que na conduta de uma pessoa que, destinando-se a seu uso próprio, adquire ou tem a posse de uma substância que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada a ausência daquela expsansibilidade do perigo” (KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias, Niterói, Luam, 1991, p. 125). Ademais, o princípio da lesividade:

[…] determina que somente podem ser considerados bens jurídicos penalmente relevantes aqueles empiricamente identificáveis, notadamente os de titularidade de pessoas de carne e osso. Do contrário, as normas penais seriam injustificáveis, pois típicas de leis penais autoritárias ou de emergências identificadas, p. ex., com a tutela da personalidade do Estado. Ferrajoli sustenta que na medida em que o Estado, nos ordenamentos democráticos, não constitui bem ou valor em si, incriminações de condutas de natureza intangível são privadas de objeto e, portanto, isentas de significado. […] Os argumentos conduzem à conclusão de que a criação de determinadas categorias jurídicas sob a tutela pública, como a saúde pública, opera espécie de espiritualização metafísica do bem jurídico, em absoluta dicotomia com a nervura da realidade cotidiana (CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil, Ed. Saraiva, 7. ed, p. 228).

Por fim, as maiores incongruências da afirmação de que o consumo pessoal de entorpecentes agride o bem jurídico-penal “saúde pública” residem 1) no elevado custo causado à rede pública de saúde pelas drogas lícitas (álcool e tabaco); 2) no galopante número de mortes causados pela política proibicionista de “guerra às drogas”, bastante superior aos índices de óbitos decorrentes do consumo abusivo de substâncias ilícitas; e, principalmente, 3) no descaso das autoridades públicas com a efetiva prestação de serviços de saúde destinados aos dependentes de psicoativos. Como destaca Helena Regina Lobo da Costa (in Análise das finalidades da pena nos crimes de tóxicos. REALE JR., Migue (coord). Drogas: aspectos penais e criminológicos, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 115), “para proteger a indefinida e vaga 'saúde pública', negligencia-se a proteção da saúde individual e concreta. […] Este paradoxo faz com que a sanção penal se torne, paulatinamente, um mero marco decorativo, desprovido de qualquer sentido de justiça”.

Noutro giro, é importante levar em conta que a (in)constitucionalidade do art. 28 da Lei de Tóxicos já se encontra em debate no Supremo Tribunal Federal, sendo objeto do Recurso Extraordinário nº 635.659, com o reconhecimento da repercussão geral da questão constitucional em análise. Até o presente momento, o debate já conta com três votos, proferidos pelos Ministros Gilmar Mendes (Relator), Luís...

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