Capítulo 1 - Pais tóxicos
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CAPíTulo 1
PAIS TÓXICoS
“Mãe é mãe. Mãe é mãe?”
Caminho percorrido
Certa vez eu estava dando aula para uma turma multidisciplinar em curso de
extensão no tema da alienação parental, quando surgiu o debate sobre a forma como
cada pai ou mãe cuida do lho. O jeito de cuidar é personalíssimo, não há receita, e
aqui cada pai ou mãe cuida do lho da forma como quer ou consegue. No debate sur-
gido na sala de aula, enquanto os alunos participavam ativamente da discussão, uma
voz gritou bem alto do fundo da sala “vocês hão de convir que mãe é mãe!”. A partir
daí, silêncio. Parte da turma pareceu se indignar com a colocação do aluno, enquanto
outros caram na expectativa de qual seria a posição da professora. Naquele momento,
entendi a importância de não contornar a discussão, mas, ao contrário, fomentar o
debate: o que signica ser mãe? O que é para um lho a gura de mãe?
Na idade antiga e na idade média, a criança e a mulher eram objeto do pater fa-
miliae e no caso de falecimento deste, a condução da família passava automaticamente
para o lho mais velho varão, lembrando que naquela época, a família era constituída
com nalidade patrimonial, de acúmulo de riquezas.
Muitos séculos se passaram e chegamos até aqui, carregando os resquícios de uma
sociedade patriarcal, onde a mulher foi colocada no lugar de cuidar do marido e dos
lhos, no espaço doméstico. Então hoje, quando pensamos nos papéis parentais, esse
pensamento não está dissociado dos papéis parentais que a história e as legislações dos
países deram à gura materna. Se zermos um breve histórico na legislação brasileira,
no Código Civil de 1916, a guarda era atribuída à mulher, o Estatuto da Mulher Casada
(Lei 4.212/62) deu à mulher o direito sobre os lhos, e na lei do divórcio de 1977 a
mulher continuava responsável pelo cuidado dos lhos, exceto se fosse considerada
culpada pela separação. O Código Civil de 2002 inovou, trazendo no artigo 1.583 a
guarda unilateral ou compartilhada, porém, faticamente à mulher continuou sendo
dado o papel de cuidar dos lhos.
A questão é: será que os operadores da Lei estão prontos para entender que a
mulher moderna tem outros desejos para além de ser mãe, cuidar da casa, do marido
e dos lhos? E para entender que o homem moderno pode desejar ocupar o espaço
doméstico e cuidar dos lhos?
A minha experiência demonstra que existe uma tentativa de mudança dos papéis
parentais herdados ao longo da história, porém existe grande resistência por parte das
mulheres em compartilhar o cuidado dos lhos. Na minha experiência de Vara de
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PSICOLOGIA JURÍDICA: A CRIANÇA, O ADOLESCENTE E O CAMINHO DO CUIDADO NA JUSTIÇA • Glicia Brazil
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Família, a maior parte dos processos que apontam abusos emocionais dos lhos são
praticados por quem exerce o lugar de mãe. Por isso pergunto: mãe é mãe?
Certa vez, eu fui ao gabinete de uma juíza conversar sobre um caso complexo
que envolvia uma criança extremamente violentada pelos atos praticados pela mãe,
que insistia em levar a criança a mais de dez conselhos tutelares diferentes para contar
a mesma história: que ela (criança) havia sido abusada sexualmente pelo pai. Após
o término das entrevistas com todos os membros da família, incluindo observação
conjunta da criança na presença do genitor, concluí que se tratava de uma mulher
vingativa, que não estava suportando a ideia de ter sido preterida na relação conjugal,
e que usava a lha para incriminar o pai. A juíza não quis conversar porque disse que
estava elaborando sentença, e que não adiantaria propor a inversão da guarda para o
pai porque ela não deferiria. Eu disse a ela: “eu não estou falando de uma mãe normal,
tipo eu e você, mas sim de uma mãe que faz muito mal à lha, e está gerando prejuízos
emocionais irreversíveis para essa menina”. Ela agradeceu a minha preocupação com
a menina e disse que iria pensar. Eu soube pelo cartório, alguns dias depois, que a mãe
havia fugido com a menina e que a juíza tinha deferido busca e apreensão para que a
criança fosse entregue à avó paterna. Zelo? Cautela? E porque não, conceder a guarda
provisória ao pai que tinha provado a inocência na esfera criminal, e fartamente de-
monstrou no processo de família aptidão para cuidar da lha, além de ter demonstrado
que havia entre ele e a lha uma interação absolutamente normal, incompatível com
a notícia que a menina havia sido vítima de abuso sexual praticado por ele.
Somente quem tem a vivência de uma Vara de Família volumosa como a capital
consegue entender que, cegos pelos conitos, os pais perdem a capacidade de cuidar,
porque estão mais focados em culpabilizar e destruir o outro. Que dor é essa pela perda
da relação conjugal que faz com que as pessoas não percebam o sofrimento que elas
acabam por gerar nos próprios lhos?
Então, sempre que eu estou diante de uma criança ou adolescente, é ao lado
dele que eu me posiciono no processo, pensando de que forma eu posso ajudar essa
criança ou adolescente a ser visto e notado pelos pais. Isso é um princípio básico que
carrego comigo na hora de escrever o laudo no sentido de que eu possa ser instru-
mento de transformação das famílias. E isso às vezes signica expor o comportamento
inadequado dos adultos do processo, independente de ocuparem lugar de pai ou mãe
de uma criança.
Assim, quando a gente fala de alienação parental, estamos falando da violência
contra a própria criança e adolescente que é vítima, e não contra a mulher, e sim
criticando o lugar da mãe como uma mãe abusiva, porque infelizmente isso existe. Eu
noto que há um movimento grande para desqualicar esse tema, dizendo que existe
um ataque às mulheres. Não existe um ataque às mulheres, e sim um movimento de
proteção para os lhos em que a mãe é a guardiã, na maior parte das vezes. Quando
falamos de tirania materna, estamos falando desse abuso de poder no lugar de mãe.
Como nunca deixamos de falar: as violências sexuais e físicas são praticadas pelos
homens contra as mulheres, e isso é um fato, quem mais faz violência física e sexual
é o homem e as maiores vítimas são as meninas; quem mais faz violência psicológica
contra o lho: as mulheres, e isso precisa ser colocado e discutido sem sexismos.
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