Capítulo 4 - A reconstrução dos vínculos pelo poder judiciário

Páginas205-222
CAPíTulo 4
A RECoNSTRuÇÃo DoS VíNCuloS
PElo PoDER JuDICIÁRIo
“o tempo é inimigo do afeto.”
Caminho percorrido
O juízo de família determinou que a psicóloga do juízo intermediasse a retomada
do vínculo da jovem com o pai, e foi aí que eu me deparei com a complexidade da
atuação do psicólogo nesse tipo de demanda, porque não era uma demanda pericial,
era uma demanda de acompanhamento psicológico feito no interior do Tribunal de
Justiça, cuja nalidade era “reconstruir” o afeto entre pai e lha.
Me deparei com uma menina de onze anos de idade, pequena, mas muito brava,
cheia de personalidade, e principalmente com muita raiva por estar sendo obrigada a
ter que comparecer ao Tribunal para se encontrar com aquele que ela acreditava ser
um monstro: o próprio pai.
Logo no primeiro atendimento, sem que o pai entrasse na sala, a jovem apresen-
tou intensa resistência em permanecer na sala, tapava os ouvidos, cava com a cara
voltada para a parede, mastigava chiclete e tinha um ar de deboche de todo aparato
judicial que me gerava espanto. Eu pensava: “será que essa menina sabe onde ela está?”
A partir dessa pergunta, iniciei o trabalho de reconstrução, onde eu z alguns
atendimentos entre eu e a menina, buscando utilizar atividades lúdicas em que ela
pudesse fazer um vínculo de conança comigo: levei revistas que falavam de esporte
(a menina praticava esporte prossionalmente), levei cartazes e gravuras de revistas
onde ela pudesse colar nos cartazes gravuras com expressões faciais compatíveis com
os sentimentos dela, e aos poucos, sem que ela percebesse, passei a introduzir nas
gravuras fotos da infância da menina, cujo teor era: pai, avó paterna e neta, em um
convívio amistoso (festa de aniversário, a neta comendo brigadeiro feito pela avó, o
pai dando água de coco nos passeios que fazia com a lha ao redor da Lagoa Rodrigo
de Freitas, dentre outros).
Gradativamente a menina passou a car mais tempo dentro da sala com o pai,
passou a olhar para o pai, passou a ouvir o pai (eu pedia para ele contar sobre o trabalho
dele e sobre coisas que ele gostava de fazer), e eu passei a observar o que funcionava
bem e o que não funcionava bem. Funcionava bem pedir que o pai contasse sobre
a vida dele olhando para mim, porque essa era a forma da lha olhar para ele sem
ser confrontada com o olhar dele. Descobri que criticar a mãe, apoiando o pai, não
funcionava bem, porque a menina se afastava de mim e no encontro seguinte estava
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PSICOLOGIA JURÍDICA: A CRIANÇA, O ADOLESCENTE E O CAMINHO DO CUIDADO NA JUSTIÇA • Glicia Brazil
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mais reativa, pois passava a me ver como gura de ameaça ao vínculo que ela tinha
com a mãe. A minha atuação nesse caso foi completamente instintiva, e só no nal
dos atendimentos eu me dei conta de que havia adotado uma metodologia cognitiva,
onde eu buscava estimular a memória, a percepção da criança sobre os fatos, para
que através da tentativa de ativar memórias da infância, essa menina pudesse resgatar
a crença de “um pai bom”.
Pensando na falta de doutrina que orientasse esse trabalho, utilizei o termo “re-
construção de vínculo afetivo”. Esse termo foi adotado em artigo publicado em janeiro
de 2010, na revista cientíca 13 do IBDFAM. Antes de pensar no nome deste artigo, não
localizei na doutrina nenhum nome que pudesse traduzir o trabalho que ali foi feito.
Acredito que eu ajudei a construir o termo “reconstrução”, conhecido hoje também
como “revinculação”.
Esse é um campo de trabalho muito fértil para o psicólogo que está fora do Tribu-
nal de Justiça, uma vez que demanda tempo e um setting adequado para os encontros
dos familiares, mas não há capacitação sobre essa forma de trabalho, nem mesmo
capacitação para os psicólogos do quadro do TJRJ.
Acredito ser papel do Poder Judiciário a reconstrução de vínculos afetivos, que
no passado foram rompidos pelo próprio Poder Judiciário. A efetividade da jurisdição
preconizada do Código de Processo Civil de 2015, não admite uma decisão judicial
apenas formal, onde ca declarado o direito do pai de conviver com a lha. A efetivi-
dade requer que o Estado-Juiz garanta ao jurisdicionado o bem da vida pleiteado, que
sejam tomadas todas as medidas necessárias para garantir a efetividade da decisão e
aqui, nesse particular, entendo que o trabalho de reconstrução devesse acontecer no
interior do Tribunal de Justiça por uma equipe própria, capacitada, diferente da equipe
responsável pelo auxílio técnico pericial.
O que aprendi com essa experiência de reconstrução, por si só, dá um livro. Eu e
o pai da jovem atendida zemos planos de escrever um livro, mas ele talvez não tenha
forças para levar adiante a escrita, porque cou desacreditado da Justiça, se tornou
mais um pai órfão de lha viva. Eu digo nas palestras que o dia que sentarmos para
contarmos esse caso juntos, eu, a jovem, e o pai, eu poderei me aposentar, porque terá
valido a pena toda a trajetória.
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