Capítulo I - A proteção da vida do nascituro e o problema da personalidade jurídica

Páginas1-52
Capítulo I
A PROTEÇÃO DA VIDA
DO NASCITURO E O PROBLEMA
DA PERSONALIDADE JURÍDICA
1. INTRODUÇÃO
Se é certo que o ordenamento jurídico, globalmente consi-
derado, se edif‌ica em torno da dignidade da pessoa humana, não
é menos verdade que algumas normas parecem beliscar o pilar
axiologicamente fundamentante do sistema e quebrar a exigível
e desejável unidade deste. Não temos a pretensão, nas linhas que
se seguem, de olhar macroscopicamente para este problema. Pelo
contrário, partindo de um nicho muito específ‌ico e privilegiando
o enfoque civilístico, procuraremos tão-simplesmente tecer algu-
mas considerações acerca de um problema que, sendo debatido
há muito pela doutrina, ainda não conseguiu gerar um verdadeiro
consenso entre os autores. Falamos, por um lado, da questão da
proteção jus-civilística do nascituro e, relacionado com este tópi-
co, do problema do início da personalidade jurídica. Tendo como
pano de fundo estas referências problemáticas, importa explicitar,
ab initio, que a aludida quebra de unidade passa pela consagração
de regimes específ‌icos – v.g. o regime penal do aborto; e o regime
da procriação medicamente assistida – que, parecendo abrir bre-
chas na proteção do nascituro, nos levam a questionar se, af‌inal,
todas as formas de vida são dignas e, como tal, merecedoras de
tutela. Ora, se a nossa resposta for sim – como não pode deixar de
ser, porque implicada pelo próprio sentido constitutivo da juri-
dicidade –, então haveremos de interpretar algumas das soluções
positivadas pelo legislador à luz dos princípios em que se louvam.
E, com isso, são não só questões de índoles teórico-conceptual
que se esclarecem, como questões de índole prático-normativa
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DIREITO E PESSOA NÃO NASCIDA
• Mafalda Miranda BarBosa
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que passam a conhecer uma solução consentânea com a inten-
cionalidade normativa que não podemos deixar de reconhecer
ao direito. Urge, porém, uma delimitação mais precisa do nosso
objeto: o nosso propósito será, apenas, neste primeiro capítulo,
o de perceber em que medida o nascituro titula ou não direitos
de personalidade, qual ou quais os mecanismos de reação contra
eventuais violações desses direitos e, in f‌ine, articular as soluções
a que chegámos com a interpretação do artigo 66º CC, nos termos
do qual a personalidade jurídica apenas tem início com o nasci-
mento completo e com vida1.
1. Sobre as questões suscitadas pelo regime da procriação medicamente assistida, cf.,
inter alia, Manuel Carneiro da Frada. A protecção juscivil da vida pré-natal. Sobre o
estatuto jurídico do embrião. Forjar o Direito. Coimbra: Almedina, 2015, 231 s., n.
5. O autor af‌irma que a lei da procriação medicamente assistida se mostra “cinzenta
e ambígua” e acrescenta que “se ao nascituro se reconhece o caráter de pessoa e, com
isso – inelutavelmente –, personalidade jurídica, daí deriva imediatamente a proibição
de o sujeitar à condição de objeto e de instrumento para quaisquer f‌ins, experimentais
ou outros. Já se admitindo o caráter de pessoa e a personalidade jurídica a ela acoplada,
toda a experimentação ou utilização para outros f‌ins deve poder se, em princípio, tão
ampla quanto possível. O que não se entende são ambiguidades (…)”.
Concluindo que o legislador reconhece, na regulamentação específ‌ica a que deu lugar,
a dignidade do embrião, o Autor sustenta que não se entende que tal reconhecimento
não tenha conduzido à “prevenção genérica da possibilidade de o instrumentalizar a
f‌ina que não ele próprio”. Assim, “este farisaico equilibrismo legislativo repercute-se a
cada passo, nas soluções avulsas dos diversos problemas. Por exemplo: para o legislador,
a instrumentalização que o embrião sofre se for objeto de criação deliberada por PMA
para investigação científ‌ica é tida aparentemente como incompatível com a dignidade
humana (…). Mas caso os f‌ins sejam outros e diferentes (entre eles, a criação de bancos
de células estaminais e o próprio melhoramento das técnicas de PMA), já nada obstaria,
ainda que a respetiva prossecução importe, do mesmo modo, a morte ou a destruição
do embrião. Num outro plano, é também totalmente incongruente, por exemplo,
proscrever a criação deliberada de embriões excedentários para experimentação e
investigação científ‌ica, como se o problema estivesse na intenção que conforma o ato e
não no ato em si mesmo. Na verdade, de que forma explicar no Direito que é a intenção
que macula a conduta, se essa conduta não for tida como desconforme com a ordem
jurídica? (…). Fica a sensação de uma lei, em diversos aspetos, obra de ideólogos e
não de juristas”.
Sobre o ponto, cf., ainda, Rabindranath Capelo de Sousa. O direito geral de personalidade.
Coimbra: Coimbra Ed., 1995, 157, n. 210; Diogo Leite Campos. O estatuto jurídico
do nascituro. Nós/Estudos sobre o Direito das Pessoas. Coimbra: Almedina, 2004, 75 s.;
José de Oliveira Ascensão. Direito e Bioética. Direito da Saúde e Bioética. Lisboa: Lex,
1991, 26 s.; José Manuel Cardoso da Costa. Genética e pessoa humana – Notas para
uma perspetiva jurídica. Revista da Ordem dos Advogados, 1991, 464 s.
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CAPíTulO I • A PROTEÇÃO DA VIDA DO NASCITuRO
2. O PERSONALISMO ÉTICO E O PROBLEMA DA
FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO
O direito existe por causa do homem e para o homem. É por
causa da incompletude natural do ser humano, aliada à escassez de
recursos para a satisfação de todas as suas necessidades, que as regras
conformadoras da conduta, acompanhadas da nota da sancionato-
riedade, se tornam imprescindíveis. Estas condições antropológica
e mundanal de emergência do direito, como foram cunhadas por
Castanheira Neves 2, não são, porém, suf‌icientes para se poder af‌irmar
que estamos diante de uma ordem de direito e do direito.
A juridicidade requer mais: aquele mais que, sendo viabili-
zado pelo sentido ético-axiológico pressuposto, nos impede de
resvalar para uma ordem da força ou para uma ordem onde o ser
humano seja aniquilado pela sua instrumentalização ou simples
desconsideração. Aquele mais, ainda, que nos impede de resvalar
para o formalismo próprio de um pensamento positivista que des-
considerava a materialidade subjacente aos casos concretos – vistos
como meros correlatos lógicos da hipótese normativa – e deixava
nas mãos do legislador todo o monopólio da criação do direito,
2. Cf. António Castanheira Neves. Coordenadas de uma ref‌lexão sobre o problema universal
do direito – ou as condições de emergência do direito como direito. Digesta – Escritos
acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros. Coimbra: Coim-
bra Ed., 2008, , v. III, 13 s. O autor fala de três condições de emergência do direito: uma
condição mundanal (“ mundo é um e os homens nele são muitos. Esta condição básica,
não obstante de um elementar truísmo, e não menos irredutível, pela qual a pluralidade
dos homens se depara na unicidade do mundo, faz decerto com que aos homens, a co-
mungarem o mesmo mundo, se imponha a necessidade tanto de nele conviverem como
de o partilharem”); uma condição antropológico-existencial (“o homem habita e comunga
o mundo numa condição social, mas habita-o nessa condição justamente como homem
(…), como um ser que se distancia do mundo e de si próprio e nessa distância ultrapassa
o mundo e a si próprio” com o que tem a possibilidade de objetivar a experiência e de
superar as ideias, de submeter-se ao pensamento racional e de compreender a realidade
espiritualmente, ou seja “ reconhece-se f‌inito e relativo no ser que é, mas não se reco-
nhece menos e já por isso, def‌iciente e carecido do ser que pode ser – da sua plenitude
de ser”. Pelo que “o homem não existe só: e isto não apenas no sentido de que, vivendo
numa pluralidade, não está só, mas essencialmente no sentido de que, sendo a sua uma
existência comunitária, ele não é só”); e uma condição ética, a implicar que os homens se
reconheçam não como objetos, mas como sujeitos, já que, “é pela qualidade de sujeitos
que se institui no mundo humano, já a indisponibilidade axiológica de uns pelos outros
e as exigências normativas de uns aos outros (…), já a constitutiva comparticipação de
cada um no todo axiológico-normativamente comunitário”.
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