Capítulo II - A vida como um dano?
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Capítulo II
A VIDA COMO UM DANO?
1. INTRODUÇÃO
Se é inegável que o direito à vida constitui o sustentáculo da
proteção que se dispensa a todos os outros direitos de personalidade,
não é menos verdade que a responsabilidade civil emergente da lesão
de tal posição jurídica subjetiva sempre se encontrou rodeada de
polémica. O debate em torno do dano da morte e dos outros danos
que lhe andam associados é disso exemplo claro.
Mais recentemente, contudo, de uma forma paradoxal no
quadro de um ordenamento que se queira afirmar de direito e do
direito, as questões relativas à responsabilidade civil a propósito
do direito à vida têm sido outras. Já não se indaga até que ponto
um determinado sujeito deve indemnizar outro por lhe ter tirado
a vida, mas questiona-se em que medida a vida pode ser encarada
como um dano.
O enunciado é simples e remete-nos evidentemente para o tema
das wrongful birth, das wrongful life e das wrongful conception actions,
tema complexo e amplamente debatido que, porém, ainda não logrou
encontrar sobre si o desejável consenso. Contudo, ultrapassa-o. Na
verdade, uma questão com idêntica intencionalidade problemática
foi recentemente colocada a propósito do comportamento do médico
que se recusou a não prestar cuidados de saúde a um paciente que se
encontrava em estado terminal.
Nas páginas que se seguem, pretendemos, revisitaremos alguns
dos argumentos que se podem mobilizar em torno das referidas
wrongful life, wrongful birth actions e wrongful conception actions. O
tratamento da questão justifica-se por ela surgir paredes-meias com
a questão do aborto: pode ou não a vida de um filho ser vista como
um dano?
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DIREITO E PESSOA NÃO NASCIDA
• Mafalda Miranda BarBosa
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São, portanto, aspetos dogmáticos da responsabilidade civil
que vêm questionados, a par de uma reflexão que não pode deixar
de convocar uma pressuposição ético-axiológica que, afinal, funda-
menta todo o ordenamento jurídico: a ineliminável dignidade ética
da pessoa.
2. WRONGFUL BIRTH, WRONGFUL LIFE E WRONGFUL
CONCEPTION ACTIONS
2.1 O estado da questão
O problema da vida própria como um dano tem sido frequen-
temente questionado a propósito das chamadas wrongful life actions,
wrongful birth actions e wrongful conception actions. Em causa está o
dano que a pessoa sofre em virtude de uma gravidez e/ou nascimento
indesejado1, a corresponder a diversas ações, consoante a estrutura
peticional que as mesmas encerram.
1. Sobre os wrongful births e as wrongful lifes, cf., inter alia, e sem embargo de ulteriores
citações, Gert Brüggemeier. Haftungsrecht: Struktur, Prinzipen, Schutzbereich zur Eu-
ropäisierung des Privatrechts. Springer, Berlin, Heidelberg, New York, 2006, 256 s.; A.
Pinto Monteiro. Direito a não nascer? Anotação ao Ac. do STJ de 19 de Junho de 2001.
Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 134. n. 3933, 2002, 371 s.; Guilherme
de Oliveira. O direito de diagnóstico pré-natal. Temas de direito da medicina. Coimbra,
1999, 214 s.; André Dias Pereira. O consentimento informado na relação médico-paciente.
Estudo de direito civil. Coimbra, 2004, 375 s.; Fernando Pinto Monteiro. Direito à não
existência, direito a não nascer. Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos
da Reforma de 1977 II. A parte geral do código e a teoria geral do direito civil. Coimbra,
2006, 131 s.; Joel Feinberg. Wrongful life and the counterfactual element in harming.
Freedom and Fullfilment, 1992; Christine Lejeune. Wrongful life – Das Kind als Vermö-
gensschaden, 2009; Geneviève Viney. Brèves remarques à propos d’un arrêt qui affecte
l’image de la justice dans l’opinion. La semaine juridique, n. 2, 2001, 65 s.; Hermann
Schünemann. Schadenersatz für mißgebildete Kinder bei fehlerhafter genetischer
Beratung Schwangerer? Juristenzeitung, 17, 1981, 574-77; B. Markesinis. Réflexions
d’un comparatiste anglais sur et à partir de l’arrêt Perruche. Revue Trimestrielle de Droit
Civil, 2001, 77 s.; Eduard Picker. Schadensersatz für das unerwünschte Kind. Archiv
für die civilistische Praxis, 195, Heft 6, 1995, 483 s.; Reinhard Zimmermann. Wrongful
life und wrongful birth. Juristenzeitung, 52, Heft 3, 1997, 131 s.; Dieter Giesen. Scha-
denbegriff und Menschenwürde. Zur schadenrechtlichen Qualifikation der Unterhalts-
pflicht für ein ungewolltes Kind. Juristenzeitung, 49, Heft 6, 1994, 286 s.; Rolf Stürner.
Schadensersatz für miβglückle Abtreibung – ein Problem der Schadenszurechnung?
Juristenzeitung, 41, Heft 3, 1986, 122 s.; Anna Grub. Schadensersatzansprüche bei
Geburt eines behinderten Kindes nach fehlerhafter Pränataldiagnostik in der Spätschwa-
ngerschaft. 2006; Paulo Mota Pinto. Indemnização em caso de nascimento indevido
e de vida indevida (“wrongful birth” e “wrongful life”). Revista Lex Medicinae, Revista
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CAPíTulO II • A VIDA COMO uM DANO?
O traçado comum das questões discutidas sob esta égide pode,
sucintamente, ser descrito com apelo à pretensão indemnizatória
baseada num nascimento que ocorre por os pais não terem decidido
abortar, apesar de o filho sofrer de malformações congénitas que
comprometem aquilo que, no entendimento comum, é uma vida
normal e digna de ser vivida. A simplicidade enunciativa não deixa,
contudo, de esconder uma profusão de hipóteses práticas cuja diversa
estrutura não pode ser escamoteada, posto que condicionante das
soluções normativas que se almejam. Assim, tentando traçar, ainda
que perfunctória e não exaustivamente, uma taxonomia orientadora
do discurso, pensamos em alguns exemplos padrão: 1) os pais, não
tendo sido alertados, por negligência do médico, para a mal formação
do embrião, não tiveram oportunidade de decidir se abortariam ou
não a criança por nascer e hoje pretendem reagir contra o clínico,
distinguindo-se os casos consoante exista ou não de uma relação
contratual firmada entre as parte; 2) o filho, inconformado com a sua
situação, pretende reagir contra o médico, fundando a sua demanda
nos mesmos dados enunciados no número anterior; 3) o filho pre-
tende reagir contra os próprios pais que não optaram pelo seu não
nascimento; 4) fruto de negligência médica, ocorre uma conceção
que não foi desejada ou que não deveria ter existido, vindo a criança
Portuguesa de Direito da Saúde. ano 4. n. 7. Coimbra. Coimbra Ed., 5 a 25; Paulo Mota
Pinto. Interesse Contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra
Ed., 2010, 738 s., n. 2094; Paulo Mota Pinto. Indemnização em caso de nascimento
indevido e de vida indevida (“wrongful birth” e “wrongful life”). Direitos de persona-
lidade e direitos fundamentais, Estudos. Gestlegal, 2018, 735 s.; Carneiro da Frada. A
vida própria como dano. Perspectivas civis e constitucionais de uma questão-limite.
Revista da Ordem dos Advogados. ano 68, v. I, 2008 (http://www.oa.pt/Conteudos/Ar-
tigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=71981&ida=72382); Carneiro da Frada.
A protecção juscivil da vida pré-natal. Sobre o estatuto jurídico do embrião. Revista
da Ordem dos Advogados. ano 70, v. I/IV, 2010 (http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/
detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=112472&ida=112751) [o último estudo citado
corresponde, segundo depoimento do autor, a outro: “O nascimento com deficiência.
Sobre o estatuto jurídico do embrião”, Estudos em Homenagem a Mário Emílio Bigotte
Chorão]; Miguel Martín-Casals; Josep Sole Feliu. Responsabilidad civil por la privación
de la posibilidad de abortar (wrongful birth). Comentario a la STS, 1ª, 18.12.2003, Bar-
celona, 2004, www.indret.com; Seana Valentine Shriffrin. Wrongful Life, Procreative
Responsibility and the Significance of Harm. Legal Theory, 5, 1999,117 s.; Georg
Faerber. Wrongful life – Die deliktsrechtliche Verantwortlichkeit des Arztes dem Kind
gegenüber. Ein rechtsvergleichende Darstellung des amerikanischen, britischen und
deutschen Rechts, 1988.
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