Anotações sobre o cartão de crédito

AutorPaulo Henrique Neme
CargoProcurador do Estado de São Paulo e mestrando em Direito na UNESP/Franca.
1. Introdução

O presente trabalho analisa a introdução dos cartões de crédito na economia do nosso país e os principais efeitos jurídicos daí decorrentes.

Como se sabe os fatos dão a dinâmica da vida em sociedade e deles que são extraídos os elementos que interessam ao mundo jurídico, para compor o suporte fático, expressão esta cunhada por Pontes de Miranda e incorporada com sucesso no nosso Direito.1 Imprescindível, pois, remontar aspectos históricos de qualquer instituto, por isso este trabalho resgata de forma sucinta a origem dos cartões de crédito.

O conceito de cartões de crédito pressupõe a análise de sua natureza jurídica, inclusive para delimitação do presente estudo, considerando que a espécie comporta várias madalidades. Em que pese não seja farta a bibliografia sobre o tema, a questão da natureza jurídica dos cartões de crédito suscitou divergências. Há posições tradicionais que consideram o cartão de crédito como título de crédito, mandato, assunção de dívida ou cessão de crédito, estipulação em favor de terceiro, meio de pagamento, ordem de pagamento e outras mais. Contudo, estudos mais recentes passaram a considerá-lo integrado num sistema contratual, para dar respostas ao feixe de contratos que o compõem. É o caso de Gerson Luiz Carlos Branco, que dedicou uma obra sobre o assunto, com seu próprio título revelador: "O Sistema Contratual do Cartão de Crédito"2. Antes, ainda, Fran Martins3 e Aramy Dornelles da Luz trataram do assunto transmitindo a idéia de sistema.4

O uso do cartão de crédito, considerando o âmbito de atuação, comporta diferentes modalidades. Pode-se cogitar de cartões de saque (cash cards), cartões de crédito (credit cards), cartões de débito (charge cards), cartões de garantia de cheques, cartões de crédito privativos etc.

Todavia, é importante consignar que o presente trabalho se circunscreve à modalidade atinente ao cartão de credenciamento bancário para acesso a crédito previamente aberto junto a terceiros, que envolve relações no mínimo trilaterais.5

É abordada de forma casuística a responsabilidade civil dos Bancos e a incidência de normas principiológicas do Código de Defesa do Consumidor, em face do feixe de contratos envolvendo relações de consumo, com destaque à questão do extravio e uso ilícito do documento, bem como outras fraudes praticadas por agentes inescrupulosos, como é exemplo a reprodução indevida do cartão, conhecida como "clonagem".

O presente trabalho utilizou-se de uma abordagem indutiva, como metodologia. Para tanto, foram consultadas obras jurídicas, artigos de especialistas e análise de jurisprudência sobre o tema, com ênfase para o Direito Bancário. Apresenta, finalmente, sua conclusão sobre o sistema contratual do cartão de crédito que veio substituir num volume crescente o adimplemento de obrigações pecuniárias sem o uso do papel moeda e dos cheques.

2. - Origem dos cartões de crédito

A chegada dos cartões de crédito no Brasil é recepcionada nas letras jurídicas de Edgard Lacerda Teixeira, por meio de interessante artigo publicado nos primeiros números da Revista de Direito Mercantil. A evolução sócioeconômica na forma de adimplemento das obrigações pecuniárias é bem sintetizada no aludido artigo, que não é demais transcrevê-la:

"Primeiro, foi a troca - ou escambo - de mercadorias. Depois, a mercadoria moeda (gado, chá, sal, tabaco etc.). Mais tarde, os metais preciosos e, finalmente, a moeda propriamente dita é adotada como intermediária das trocas e denominador comum: de valores econômicos. Os inconvenientes e os riscos inerentes ao transporte físico da moeda de um local para outro levaram ao aparecimento, no comércio inter-regional ou intenacional, das letras de câmbio. Surgem, então, em sua rica variedade instrumental, os títulos de crédito da era moderna. Os cheques substituem a posse física da moeda e estimulam os meios de pagamento. Aproximamo-nos do estágio das sociedades sem papel-moeda (cashless society). Eis que agora, mercê dos cartões de crédito e dos computadores eletrônicos, já se vislumbra a dispensa do próprio cheque como instrumento de pagamento. Estaríamos nos limiares da Checkless society "6

Nelson Abrão7 e Fran Martins8 lembram que o uso dos cartões de crédito tem sua origem mais remota na década de 20 nos Estados Unidos da América, por iniciativa das grandes Magazines, cadeias de hotéis e companhias petrolíferas. Estas grandes empresas emitiram cartões buscando tornar cativos clientes seletos, oferecendo-lhes facilidades de pagamento. Todavia, a partir de 1950 é que a maioria dos autores traz como certa a feição definitiva dos cartões na forma hoje conhecida. A iniciativa pioneira coube a Franck McNamara, Ralph Schneider e Alfred Bloomingdale, que criaram os primeiros cartões para utilização apenas em restaurantes. Consta, como fato pitoresco, que Alfred Bloomingdale, provocado a pagar a conta do restaurante que jantava na companhia dos dois amigos acima citados, viu-se na contingência de "pendurar a conta" com o proprietário do restaurante, seu conhecido, porquanto estava desprovido de seu talão de cheques e também de dinheiro. Daí surgiu a idéia, entre os três amigos, das vantagens e benefícios da emissão de cartões de crédito para fiar as contas em restaurantes. Nasceu, então, os cartões Diner's Club.9 A introdução dos cartões de crédito no Brasil se deu na década de 1960, sendo também pioneiro entre nós o Diner's Club.

3. - Conceito e natureza jurídica

Considerando apenas o aspecto corpóreo, cartão de crédito:

"é expressão sugestiva do instrumento físico com que se dão operações de crédito aberto pelos estabelecimentos emissores a favor do usuário-consumidor, que, preenchendo os requisitos estabelecidos, pode exercer o consumo com pagamento diferido" 10 .

Nelson Abrão, a respeito, conceitua o cartão de crédito como um documento comprobatório de que seu titular goza de um crédito determinado perante certa instituição financeira, a qual o credencia a efetuar compras de bens e serviços a prazo e saques de dinheiro a título de mútuo. Como se vê, nesta definição está incluída a modalidade que revela a tendência de concentrar dupla finalidade num único cartão bancário, ou seja: cartão de crédito para compra de bens e serviços perante terceiros e cartão de saque e movimentação de conta bancária corrente do titular. Este saudoso e consagrado estudioso do Direito Bancário, embora de passagem fale em sistema de cartão de crédito, dá ênfase e procura analisar separadamente as relações jurídicas entre as partes. Vê na relação entre o banco emissor e o titular do cartão a configuração de mandato, já que o primeiro se obriga a pagar as despesas feitas pelo titular com o uso da cartão, até um certo limite, reservando-se no direito de ser reembolsado pelo segundo. Interpreta a relação entre o emissor e o fornecedor como promessa de cessão de crédito que este faz àquele. Nesta relação o fornecedor recebe a indicação dos portadores e tem a garantia de receber o devido por estes, assegurando em retribuição ao emissor o pagamento de uma comissão. Por fim, na relação entre o titular do cartão e o fornecedor vê a caracterização de um contrato normal de compra e venda ou de prestação de serviços, com a diferença de que, no caso, o pagamento se dá com o uso do cartão.11

Contudo, estas relações jurídicas são vistas hoje de forma sistematizada. Fran Martins já transmitia esta idéia ao consignar:

"o conjunto de todas essas relações jurídicas compõe o que se chama sistema de cartões crédito. O sistema compreende não apenas as pessoas que o integram - emissor, titular do cartão e fornecedor - como as relações jurídicas existentes entre essas pessoas e as modalidades próprias da utilização dos cartões". 12

Já Aramy Dornelles da Luz aprofundou-se mais sobre o assunto, desvendando o sistema operacional do cartão de crédito bancário, a ponto de esclarecer que esta modalidade é a única a justificar seu estudo como instituto jurídico, já que nasce pela criação de relações trilaterais no mínimo; isto porque sem as três partes não se tem o acreditivo. Cabe aduzir que nesta relação trilateral pode-se somar uma outra. É o que hoje ocorre com freqüência nas parcerias dos Bancos com as Instituições Internacionais de administração de cartões de crédito, tais como Visa, Mastercard, Passaporte, Diner's etc. Considera o cartão de crédito um negócio jurídico complexo, contendo no mínimo três partes. Classifica tal contrato como de duração, adesão, oneroso, comutativo, atípico.13

Este conceituado autor de Direito Bancário, assim se expressa a respeito:

"O sistema operacional do cartão de crédito é composto por um conjunto de três negócios jurídicos complexos que regem e disciplinam três relações distintas entre as três partes envolvidas em cada operação, formando os lados de um triângulo.

Diversas teses produziu a doutrina para explicar a natureza jurídica dessas relações. Apontaram para a assunção de dívida, a cessão de crédito, a sub-rogação, a estipulação em favor de terceiro, o mandato, meio de pagamento, ordem de pagamento, título de crédito e muitas outras. Entretanto, vêse que qualquer dessas teses olha apenas para um dos lados do triângulo, enxergando somente uma única relação". 14

Conforme já aludido na parte introdutória, Gerson Luiz Carlos Branco examina com minúcias a natureza jurídica do cartão de crédito. Estabelece um confronto entre as proposições tradicionais, que se louvam nos institutos jurídicos tradicionais para explicar...

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