O casamento e as recomposições familiares - o exemplo da relação mãe-filha na França do século XIX

AutorGabrielle Houbre
Páginas37-51
1
O casamento e as recomposições familiares
O exemplo da relação mãe-filha na França do século XIX
Gabrielle Houbre
Traduzido por Vera Lucia Soares
Resumo: No século XIX, a sociedade apoia-se principalmente na família, que também é a
esfera por excelência das mulheres. As mães devem educar as filhas até o casamento,
transmitindo-lhes os valores vinculados ao modelo de esposa-mãe. Dentro deste quadro, o
casamento vem a ser um transtorno na economia familiar e o marido uma ameaça à
relativa autonomia das relações mãe-filha. Percebe-se, ao longo do século, uma
animosidade crescente entre genros, que querem gozar de seu poder marital, e sogras, a
quem os costumes sociais reconhecem o privilégio da autoridade sobre as filhas. O
enfrentamento dessas duas lógicas de gênero perdura por ocasião da chegada do primeiro
filho que participa igualmente de uma complexa e, por vezes, dolorosa recomposição da
ordem familiar e social.
Palavras-chave: mãe; filha; genro.
Se as relações mãe-filha apresentam, cada qual a seu modo, singularidades que desafiam
o tempo, elas também inscrevem-se de forma específica na história. Nesse sentido, o século
XIX foi o que mais se interessou por essas relações, teorizando-as e codificando-as a partir do
conceito de “natureza feminina”, herdado do século anterior. Na verdade, o século XVIII foi
decisivo para a elaboração e difusão de uma nova identidade feminina, representada sob duplo
aspecto: físico e moral. Influenciados por Buffon – que, em seus trabalhos, dá a entender que
tudo deriva do corpo – e por Rousseau – que se recusa a acreditar no pecado original da
mulher e exalta sua familiaridade com a natureza, principalmente por sua função reprodutora
–, os médicos das Luzes criam uma ciência médica racional que, fundada na observação da
anatomia e da psicologia, deveria permitir a descoberta de toda a verdade sobre a natureza
humana. Descreditando o modelo até então dominante do sexo único, que via o corpo
feminino como uma variante inferiorizada do corpo masculino, passam a privilegiar a
diferença sexual, não só a partir do exame dos órgãos genitais, como fora costume desde a
Antigüidade até o século XVII, mas a partir de uma comparação minuciosa de cada elemento
corporal. Editado pela primeira vez em 1775 e republicado até o final do Segundo Império, o
Sistema físico e moral da mulher (Système physique et moral de la femme), de Pierre Roussel,
sistematiza, assim, uma natureza feminina vulnerável e sensitiva, dependente da força
protetora e da razão masculinas. Do início do século XIX até praticamente os anos de 1960,

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT