O Estado de exceção e a crise da democracia brasileira

AutorVitor Hugo Nicastro Honesko
CargoMestre em Filosofia do Direito (PUC-SP). Coordenador do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR) - Campus Arapongas.
Páginas31-37

    Artigo parcialmente publicado em: MACEDO, Paulo Emílio Vauthier Borges de (Coord.). Direito e política: anais do II Congresso Brasileiro. Curitiba: Juruá, 2005. p. 243-249.

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1 Considerações Iniciais

Com o advento de uma época marcada pela globalização econômica, as considerações acerca do Direito devem tomar um novo rumo. Se todo discurso jurídico deve-se apoiar na legitimidade, então nada mais legítimo do que justificar o Direito pela democracia.

Nascida em Atenas e reconstruída em diferentes aspectos na modernidade, a democracia tem como sustentáculo ideológico a presença da vontade geral dos cidadãos. Neste sentido, o artigo que se segue analisa em que aspectos a democracia contemporânea efetivamente realiza a soberania popular. O objeto principal desta análise é o Brasil, país subdesenvolvido que, nos tempos de neoliberalismo, possui características duvidosas quanto ao exercício da democracia.

2 A Democracia

Para falar sobre democracia, imprescindível se faz a menção de seu surgimento na História da humanidade. Como é exaustivamente pregado, o início da democracia se dá em Atenas por volta do século V a.C. com a reforma de Clístenes, em que os cidadãos1 poderiam participar diretamente das decisões ocorridas no espaço político do território ateniense - da polis. Ao contrário da monarquia (monas), oligarquia (oligói) e anarquia (an), que atribui a um, a alguns ou a ninguém a função suprema de governo (arkhía), a democracia (demói: os cidadãos; krátos: força, poder, senhorio) é o poder dos cidadãos representado por meio da lei (CHAUÍ, 2002, p. 133).

Todo entusiasmo em torno da democracia ateniense não é em vão, pois nunca se viu, na ambiência espiritual de um povo, tão grande apreço pelo discurso (logos) como "veículo político de realização do controle social, sendo mesmo entronizado como Peithós, o poder persuasivo" (GUERRA FILHO, 2000, p. 80). Por esta admirável característica, nota-se que a participação na coisa pública (res publicae, no latim, daí "República") assume um papel preponderante na vida da Cidadeestado, onde a publicidade dos assuntos garante "uma preponderância daquele setor dos interesses comuns sobre os negócios privados, e a prática em público de atos do interesse geral da coletividade" (GUERRA FILHO, 2000, p. 81).

Diante da perspectiva acima delineada, é ainda imperioso comentar sobre uma das mais distintas qualidades da democracia ateniense, que é a participação direta do cidadão no governo da polis, podendo-se falar em democracia direta ou participativa. Além disto, na conceituação de cidadania ateniense, afiguram-se dois princípios fundamentais: a isonomía, que significa a igualdade de todos perante a lei, e a isegoría, que é o direito de todo cidadão a expressar sua opinião em

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público, e vê-la discutida no momento da decisão coletiva. Deste modo, a democracia ateniense não admite que, na política, alguns possam mais que outros (exclui, portanto, a oligarquia, isto é, o poder de alguns sobre todos); e não aceita que alguns julguem saber mais do que os outros e por isso ter direito de, sozinhos, exercer o poder. (CHAUÍ, 2002, p. 133).

Reafirma que todos possuem os mesmos direitos e deveres, todos são iguais.

Durante o período medieval e início da Idade Moderna, o ideal democrático foi praticamente esquecido. Apenas com o advento do século XVII, que ficou conhecido como a época em que se começou a questionar as certezas tradicionais (crise da consciência européia), ressurge a luta pela liberdade e a igualdade. Isto aconteceu porque, no decorrer dos dois séculos que sucederam à era que se convencionou denominar Idade Média, a Europa conheceu um extraordinário recrudescimento da concentração de poderes. (COMPARATO, 2003, p. 47).

Com a expansão do comércio, em que o foco da economia se muda do campo para a cidade, foram dissolvidos os antigos vínculos sociais de uma Idade Média feudalista. Esse distintivo da vida política e econômica do século XVII criou espaço para o desenvolvimento de uma classe relativamente autônoma, que se concentrava nos centros urbanos: os burgueses. Economicamente falando, os burgueses se situavam entre a nobreza e o clero de um lado, e os camponeses de outro. Seus membros ganhavam a vida com atividades totalmente estimuladas pela expansão do comércio (Cf. ISHAY, 2004, p. 72).

A partir da metade do século XVII até meados do século XVIII, entretanto, os burgueses europeus se sentiram encurralados com a indecisão entre dois tipos de economia: entre uma próspera economia internacional e uma atrasada economia tradicionalista que visava a um mercado essencialmente nacional. A nobreza continuava dominando o governo, a administração pública, a igreja, e a maioria das instituições sociais. Ela resistia a qualquer tipo de mudança no status quo que pudesse minar seus privilégios políticos. Os interesses da burguesia, no final, colidiram com os interesses da monarquia, gerando as Revoluções Inglesa, Americana e Francesa. (Cf. ISHAY, 2004, p. 72).

Com a oposição entre a liberdade do indivíduo e o absolutismo do monarca nasce o Estado de Direito, que se levanta como uma "armadura de defesa e proteção da liberdade" (BONAVIDES, 1996, p. 41). Neste ínterim, enfrentando as resistências impostas pela nobreza, as demandas políticas dessa nova classe em formação cresceram mais revolucionárias e universalistas em sua orientação (Cf. ISHAY, 2004, p. 72-73).

Esse universalismo mostra-se muito presente nas Declarações de direitos cunhadas nessa época, frutos da tomada do poder político pela burguesia. Um exemplo claro de tudo o que foi dito se mostra na Declaração de Virgínia, dos Estados Unidos da América, em 1776. O artigo I da Declaração diz que:

Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por nenhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar e obter a felicidade e a segurança (COMPARATO, 2003, p. 114).

Com a Revolução Francesa, treze anos após, a mesma idéia propagada pelos revolucionários norteamericanos é defendida. Veja-se o artigo primeiro da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum" (COMPARATO, 2003, p. 154).

A proclamação de que todos os seres humanos são iguais, em direitos e dignidade, traz consigo uma profunda transformação nos fundamentos da legitimidade política. Tem-se a concepção de soberania popular, auge do pensamento político de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Essa soberania está, para o filósofo de Genebra, intimamente ligada à "vontade geral" (volonté générale), como ele próprio diz:

Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só pode ser representado por si mesmo. (ROUSSEAU, 1978, p. 44).

Seguindo os ensinamentos que decretaram a "sentença de morte do absolutismo e marco na passagem para uma nova era" (GUERRA FILHO, 2000, p. 93), a Declaração de Virgínia afirma categoricamente, em seu artigo II, o princípio da soberania popular: "Todo poder pertence ao povo e...

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