Direitos culturais e a proteção jurídica do Patrimônio Arqueológico Brasileiro: Notas sobre a Lei 3.924/61

AutorMário Ferreira de Pragmácio Telles
Páginas199-210

Mário Ferreira de Pragmácio Telles. Mestrando em Museologia e Patrimônio pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. É advogado, especializado em Direitos Culturais, com pesquisas no campo do patrimônio cultural.

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1 Considerações Iniciais

Este trabalho tem escopo de auferir reflexões acerca da proteção jurídica do patrimônio arqueológico brasileiro, através da análise da legislação federal que confere tal guarida, a saber, a Lei 3.924, de 26 de julho de 1961.

Serão apresentados alguns aspectos gerais dessa norma, referentes à identificação dos elementos medulares da Lei 3.924/61, tais como finalidade, efeitos, princípios etc.

Importante ressaltar que esta análise será feita a partir da ótica dos Direitos Culturais, novo ramo do Direito que está em fase de solidificação. Nada mais oportuno a se fazer numa revista homônima.

2 O Lugar do Patrimônio Cultural: Entre o Direito Ambiental e o Cultural

Este item é um ponto de extrema importância não só para o presente trabalho, mas também a toda gama de estudos jurídicos concernentes ao patrimônio cultural, resvalando, ainda, na eficiência da aplicação de políticas públicas de preservação do patrimônio cultural.

Trata-se, resumidamente, em compreender a necessidade de se estudar o patrimônio cultural, no qual está inserido o patrimônio arqueológico, à luz dos Direitos Culturais, e não, exclusivamente, sob o manto do Direito Ambiental, como se faz atualmente.

A doutrina jurídica majoritária entende que o patrimônio cultural é objeto de investigação do Direito Ambiental - principal objeto de estudo da subárea denominada de meio ambiente cultural1 - por se tratar de um bem ambiental, ou equiparado a um bem ambiental2.

Tal entendimento se reflete na primeira conclusão da Carta de Ouro Preto (2009)3, da qual são signatários muitos dos doutrinadores referidos4. EstePage 200 documento, oriundo de um encontro de representantes do Ministério Público, dispõe logo na conclusão inaugural:

Os representantes do Ministério Público Federal e Estaduais, os representantes dos demais órgãos públicos vinculados à proteção do patrimônio cultural e os integrantes da sociedade civil presentes no IV Encontro do Ministério Público de Defesa do Patrimônio Cultural realizado nos dias 11, 12 e 13 de março de 2009 na cidade de Ouro Preto, MG, Monumento Nacional e Patrimônio Cultural da Humanidade, sob os auspícios da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente, ratificando as conclusões dos Encontros de Goiânia, Santos e Brasília, votam e aprovam as seguintes conclusões:

1) Devido ao tratamento constitucional recebido pelo patrimônio cultural, o mesmo regime jurídico aplicável constitucionalmente aos bens ambientais naturais será aplicável aos bens culturais. (grifo nosso)

O Ministério Público é, na visão do autor deste artigo, a instituição que melhor faz a discussão jurídica sobre patrimônio cultural, constituindo a vanguarda do pensamento jurídico sobre o assunto, além de ser uma grande guardiã do patrimônio cultural brasileiro.

A Carta de Ouro Preto é uma síntese das atuais discussões efetuadas na área jurídica, encabeçada, sobretudo, por representantes do Ministério Público tanto federal, quanto estadual - razão pela qual se reconhece a importância de tal documento.

Contudo, discorda-se dessa primeira conclusão da Carta de Ouro Preto, entendendo que o patrimônio cultural não é um bem ambiental, é um bem cultural. E por essa razão deve ter a incidência de um regime jurídico condizente e específico ao bem cultural.

A CF/88, em momento algum, equipara o patrimônio cultural ao meio ambiente. Isto é construção da doutrina pátria, em muito influenciada pela doutrina italiana. A Carta Magna, ao revés, destina uma seção relacionada ao patrimônio cultural, principalmente o art. 216 - dentro da Seção II, da cultura - enquanto que às relacionadas ao meio ambiente estão concentradas, principalmente, no art. 225, em capítulo próprio da Constituição Federal.

Dito isto, questiona-se: qual a vantagem de se estudar o patrimônio cultural dentro dos Direitos Culturais? Isso significa ganhos à preservação do patrimônio cultural ou constitui mero debate acadêmico de uma área nova que está se solidificando?

Para auxiliar a presente argumentação, será utilizado, como base, o estudo da jurista portuguesa Carla Amado Gomes, professora da Universidade de Lisboa, em artigo publicado na revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa intitulado "Direito do patrimônio cultural, Direito do Urbanismo, Direito do Ambiente: o que os une e o que os separa".

Antes de analisar as colocações da autora lusitana, é importante destacar que em Portugal há a intenção, pela doutrina, de se criar uma seara própria ao patrimônio cultural. Trata-se do Direito do Patrimônio Cultural5. O autor deste trabalho, contudo, entende que o patrimônio cultural integra uma categoria maior, os chamados Direitos Culturais6. Mesmo assim, os estudos de Carla Amado Gomes, com as devidas adaptações, servem perfeitamente aos propósitos da reflexão aqui apresentada.

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Retomando: a jurista portuguesa disserta sobre a abrangência do Direito do Ambiente, que pôde ser também vislumbrada na primeira conclusão da Carta de Ouro Preto de 2009, anteriormente transcrita7:

Esta constitui, salvo melhor opinião, um vício derivado da noção ampla de ambiente, da visão gianniniana, fatalmente não unitária, que pretende 'reduzir à escravidão os outros ramos ou procede[r] à sua anexação pura e simples´. O Direito do Ambiente só faz sentido se reduzido ao seu núcleo próprio, que é o da preservação da capacidade regenerativa dos recursos naturais, sujeitando os utilizadores a princípios de gestão racional daqueles. O resto é com os outros ramos do Direito.

Ainda sobre essa demasiada amplitude do Direito Ambiental, assim pensa a jurista portuguesa8:

Apelando uma vez mais ao ensinamento de Freitas do Amaral, 'uma coisa é haver sobreposições, implicações, interação de conceitos, políticas e normas de natureza distinta; outra coisa é integrar tudo numa única noção tão ampla e abrangente que tudo confunda, e não permita criar identidades próprias e particularidades específicas. Ou, por outras palavras, Direito do Patrimônio Cultural, Direito do Urbanismo e Direito do Ambiente, são todos diferentes, na medida das diferenças.

A bem da verdade a doutrina brasileira do Direito Ambiental trouxe para si os estudos sobre patrimônio cultural que, à primeira vista, estavam descobertos. Pela proposta contestadora e vanguardista que o Direito Ambiental assumiu, propondo uma verdadeira mudança de paradigma dos estudos jurídicos, antes concentrados apenas nos conflitos individuais originários do pensamento burguês pós-revolução francesa, ampliando-se para uma visão mais complexa dos direitos difusos, vê-se que o patrimônio cultural sempre esteve em boas mãos.

Entende-se, contudo, que o Direito Ambiental possui suas limitações. Isso não quer dizer que uma seara deva excluir a outra da investigação. Corrobora-se com o entendimento de Carla Amado Gomes quando afirma9:

Não é demais sublinhar a intercomunicabilidade dos ramos em causa. Autonomia disciplinar e científica não invalida convergência de objectivos, não obsta a sobreposições. Elas são mesmo essenciais, como forma de atestar a necessária articulação entre as várias políticas [...].

Carla Amado Gomes entende não ser mero purismo acadêmico tal investigação, mas é importante evidenciá-la10:

[...] poder-se-á questionar o porquê deste purismo. Não é uma mera teima acadêmica, antes pode revelar-se importante a vários títulos. Conforme refere Freitas do Amaral, definir objectos específicos dos vários ramos em questão admitindo, obviamente, que existem razões que justifiquem a sua autonomização pode ter conseqüências práticas, quer ao nível da interpretação da lei (uma vez que, em cada domínio, lidaremos com princípios diversos), quer ao nível da integração das suas lacunas, quer ainda para efeitos de apuramento das vias de tutela dos direitos dos particulares. Nós acrescentaríamos até mais um ponto: o da elaboração e implementação de políticas de protecção do patrimônio, do urbanismo e do ambiente que, sob pena de falta de coerência e dispersão, devem focalizar-se em objectos bem definidos.

O autor deste trabalho concorda com Amado Gomes, entendendo não haver purismo acadêmico, uma vez que há repercussões práticas nesse sentido. Faz diferença, sim, estudar o patrimônio cultural sob a ótica dos Direitos Culturais.

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A dependência doutrinária e conceitual do patrimônio cultural ao Direito Ambiental interfere na eficiência de preservação do patrimônio cultural. Além da dificuldade de utilização da parte principiológica, que será aqui apresentado a partir dos estudos de Inês Virgínia Prado Soares11, há ainda outros problemas que se refletem, por exemplo, na efetivação de políticas públicas para o setor. Apesar de haver um conjunto de normas relativas à proteção do patrimônio cultural, não é raro o Poder Público se valer, com dificuldade, do ordenamento ambiental para conseguir aplicar tais políticas.

Um exemplo dessa dependência é a impossibilidade de aplicação das multas existentes no Decreto-lei 25, de 30 de novembro de 1937 (DL 25/37)12. Segundo estudos de Guilherme Cruz de Mendonça, a Lei 9.605/98, conhecida como Lei dos Crimes Ambientais, revogou todas as sanções administrativas previstas no DL 25/37. Com a Lei de Crimes Ambientais, o IPHAN está impossibilitado de aplicar tais multas e, conseqüentemente, ter acesso aos recursos advindos delas, em virtude desta nova lei que delegou a competência de exercer o poder de polícia ambiental aos órgãos que integram o...

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