Anotações sobre a ação civil pública

AutorVicente de Paula Marques Filho
CargoDocente do Curso de Direito da Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Docente da disciplina de Direito Civil e mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Endereço para correspondência: Av. Paris, 675. Jardim Piza. 86041-140 Londrina, Paraná, Brasil
Páginas59-66

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Introdução

As últimas décadas foram marcadas por profundas transformações sociais. O conhecimento humano se multiplica em progressão geométrica, criando novas situações fáticas e relacionamentos individuais e metaindividuais até então sequer imaginados.

A antiga concepção da igualdade formal entre os indivíduos, dos contratos celebrados a partir da livre discussão de suas cláusulas, foi substituída pela crescente proteção jurídica de certas categorias de pessoas, a partir do reconhecimento de sua fragilidade frente às grandes corporações.

A responsabilidade civil fundada exclusivamente na culpa já não atendia eficazmente a todos os tipos de relações jurídicas. A responsabilidade civil objetiva ganha espaço no cenário jurídico atual, facilitando a recomposição dos prejuízos nos casos em que a prova da culpa entremostra-se extremamente difícil. Nos danos ambientais, a responsabilidade objetiva predomina. Por outro lado, também a consciência da necessidade de se promover um desenvolvimento sustentado, ecologicamente equilibrado, passou a exigir mecanismos processuais através dos quais se pudesse exercer a tutela dos chamados interesses difusos.

Evidentemente que o direito processual não poderia ficar alheio a todas essas transformações. O cunho eminentemente individualista adotado pelo nosso Código de Processo Civil mostrou-se insuficiente para atender à nova realidade social e jurídica. Foi neste contexto que a ação pública surgiu. Trata-se de moderno instrumento processual, capaz de oferecer uma adequada tutela jurisdicional, adaptada às novas pretensões do direito material.

Conceito e Natureza Jurídica

A ação civil pública tem natureza não penal, como do próprio nome se infere. Balizada doutrina a conceitua como "o direito conferido ao Ministério Público de fazer atuar, na esfera civil, a função jurisdicional" (Mancuso, 1996, p. 15).

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Para Édis Milaré, a ação civil pública tem natureza jurídica especialíssima: "não é direito subjetivo, mas direito atribuído a órgãos públicos e privados para a tutela de interesses não individuais stricto sensu" (1995, p. 241).

Vicente Greco Filho (1996, p. 75) conceitua ação, "latu senso", como "o direito subjetivo público de pleitear ao Poder Judiciário uma decisão sobre uma pretensão". Neste sentido, sendo toda a ação a priori pública, não se pode, a partir daí, encontrar a justificação para o adjetivo "pública" da tutela que ora se enfoca.

A publicidade da ação civil passou a ser deslocada para o aspecto da legitimação ativa. A ação seria pública face a legitimidade do Ministério Público para a proposição dessa ação.

A partir da extensão da legitimidade a outras entidades estatais e privadas, tal justificativa perdeu sua validade. Atualmente, assevera-se que a ação é pública face ao interesse metaindividual que se visa proteger.

Entende-se que a ação civil pública tenha caráter eminentemente condenatório. Visa, além de acertar o direito material controvertido, aplicar a sanção no caso concreto. A ação civil pública dispõe também de mecanismos jurídicos que dão ao juiz a possibilidade de entregar ao credor o direito em espécie, através da aplicação de multa diária contra o devedor renitente no cumprimento das obrigações de fazer e não-fazer.

Objeto da Ação Civil Pública

A ação civil pública tem por objeto a defesa judicial de interesses difusos, metaindividuais. Quando se diz, por exemplo, que ela visa tutelar os interesses do consumidor, tem-se em vista não os interesses individualmente considerados, mas aqueles que atinjam uma coletividade ou um número indeterminado de pessoas.

Na redação inicial do projeto elaborado pelo Ministério Público paulista, posteriormente convertido em projeto do executivo, não se limitava o campo de atuação da ação civil pública aos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico tal como sancionado pelo então presidente da República.

O projeto contemplava o cabimento da ação para a proteção de todos os direitos difusos e coletivos, de modo a não adotar qualquer enumeração taxativa. O veto presidencial ao mencionado dispositivo foi justificado ao argumento de que a ampliação demasiada da ação civil pública colocaria em risco a segurança jurídica, principalmente face a não sedimentação da doutrina e jurisprudência nesse campo.

Na verdade, o veto presidencial teve por objetivo evitar que a ação civil pública fosse utilizada contra o próprio Estado, máxime pela edição dos chamados "pacotes econômicos" que invariavelmente lesavam um grande número de contribuintes.

Com a sanção do Código de Defesa do Consumidor, foi restaurado o campo de abrangência inicialmente proposto, permitindo-se a utilização da ação civil pública em defesa de qualquer outro interesse difuso ou coletivo.

Hugo Nigro Mazzilli, nesse mesmo sentido, assevera que: "Atualmente inexiste sistema de taxatividade para a defesa de interesses difusos e coletivos. Além das hipóteses já expressamente previstas em lei para a tutela judicial desses interesses (defesa do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio cultural, das crianças e adolescentes, das pessoas portadoras de deficiência, dos investidores lesados no mercado de valores imobiliários, de interesses ligados à defesa da ordem econômica) - qualquer outro interesse difuso ou coletivo pode ser defendido em juízo, seja pelo Ministério Público, seja pelos demais legitimados do artigo 50 da Lei 7.347 e do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor" (1995, p. 100-1).

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Rodolfo Camargo Mancuso diz que o objeto da ação civil pública tem sede no artigo 30 da Lei 7.347/85: "A ação civil terá por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer". Disso se extrai que o pedido imediato terá natureza condenatória.

Pela própria natureza do interesse protegido: o meio ambiente, consumidores e patrimônio cultural, sempre que possível, se busca a prestação jurisdicional em espécie, visando-se a paralisação da atividade predatória ou a recuperação do bem ou do interesse protegidos. Porém, nem sempre isso é possível. Não há como se reverter a extinção de determinada espécie de vida animal, ou a erosão já consumada.

Hely Lopes Meirelles afirma que "a imposição judicial de fazer ou não fazer é mais racional que a condenação pecuniária, porque na maioria dos casos o interesse público é o de obstar a agressão ao meio ambiente ou obter a reparação...

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