Mineração em terras indígenas, direitos humanos e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos

AutorCarlos Frederico Marés de Souza Filho; Kerlay Lizane Arbos
Páginas187-194

Carlos Frederico Marés de Souza Filho. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, UFPR. Graduado em Direito pela UFPR. Atualmente integra o Programa de Mestrado e Doutorado da PUC-PR. Procurador Geral do Estado do Paraná.

Kerlay Lizane Arbos. Especialização em MBA Gestão Ambiental pela Universidade Federal do Paraná, UFPR. Graduada em andamento em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, UFPR. Atualmente é Advogada da Empresa Lenzi, Castilho e Advogados Associados, LC, Brasil.

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1 Considerações Iniciais

A legislação brasileira, antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, determinava a integração do índio à sociedade como uma forma de transformar todos em não índios. Desde a época da colonização não há qualquer complacência ou tolerância para com os indígenas, pois a guerra travada contra estes indivíduos possui duas frentes bem definidas: o ataque físico e o ataque cultural. A política integracionista entrou em decadência após a promulgação da Carta Constitucional de 1988, mas os reflexos desta pressão cultural ainda são sentidos pelas populações indígenas.1 Os índios sofrem desde a época da conquista do território brasileiro pelos colonizadores. A matança e a retirada destes foi uma das formas de conquista de suas terras, tão ricas em biodiversidade. E desde a colonização da América Latina as populações indígenas vêm sendo alvo de diversas formas de exploração.

Esta ainda persiste e, agora, muito mais revestida de interesses econômicos que sempre acabam sacrificando o pouco de dignidade que estes indivíduos ainda detêm, visto que marginalizados pelo sistema. A visão integracionista que se formou, sentida até hoje, também é responsável por esta marginalização.

Ainda, o forte interesse nas terras dos índios e em seus recursos ambientais, tais como madeira e minérios, aliados a dominação política, ideológica e econômica das elites municipais, torna insustentável e escassa a oportunidade de sobrevivência destes indivíduos para com outros membros da sociedade, como as populações rurais. As famílias do campo, que também precisam sobreviver (plantar e colher), geralmente criam conflitos ao adentrar as terras indígenas e o resultado sempre acaba sendo a violência.

Portanto, com intuito de mitigar os efeitos danosos de uma integração forçada, a Constituição Federal de 1988 passou a dar uma proteção aos direitos e interesses dos povos indígenas, iniciando-se um processo de grandes mudanças. O artigo 231 da Constituição estabelece que:

"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo a União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".

Com a Constituição Federal de 1988, muda-se o paradigma da integração do índio a civilização, após séculos de tentativas fracassadas. Os constituintes perceberam a realidade: os índios não eram passageiros, destinados ao desaparecimento etnocultural, como se pensava. Garantiu-se a eles o direito de viver como pessoas diferenciadas em relação ao povo brasileiro.

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Reconheceu, portanto, o direito a multietnicidade, garantindo as comunidades indígenas o uso da biodiversidade existente em seu território, bem como o usufruto sobre os recursos naturais de suas terras. Da mesma forma, o texto constitucional prevê a posse permanente das terras ocupadas pelas comunidades indígenas, que podem autorizar ou não o acesso de terceiros a estes recursos.

Apesar da Constituição assegurar a posse permanente das terras as populações indígenas, estes ainda sofrem demasiadamente com conflitos provocados pelas invasões. Muitas destas terras ainda não foram demarcadas e as que foram são constantemente invadidas por garimpeiros, madeireiros, fazendeiros, dentre outros, interessados nos recursos ambientais que possuem.

Os povos indígenas estão em contato direto com o meio ambiente. Conhecem a fauna e a flora local, utilizando-a de forma que não ocorra escassez dos recursos naturais. O manejo tradicional contribui para a manutenção da riqueza biológica, sendo de grande importância para a preservação ambiental.

A imensa riqueza existente nestes territórios é preservada, uma vez que as atividades desenvolvidas pelas populações indígenas são de baixo impacto ambiental. Por outro lado, o ecossistema vem sendo vítima da exploração desmedida de muitos grupos, como os garimpeiros, que há décadas exploram estas terras causando altos impactos socioambientais.

É neste sentido, que a atividade de mineração em terras indígenas acarreta problemas aos direitos coletivos desses povos, principalmente devido a grande devastação da terra, a proliferação de doenças, a violência e a destruição das riquezas naturais ali existentes.

2 Mineração em Terras Indígenas

Desde a época imperial, enquanto o Brasil deixava de ser colônia portuguesa e era proclamada a República (1822-1889), não existia nenhum tipo de legislação que mencionasse a mineração nestes territórios. Com o "descobrimento" do Brasil, depois de estabelecidos os mecanismos de concessão de terras para aqueles que se dispusessem a trabalhá-la, à Coroa Portuguesa se reservou o direito de reter a quinta parte das riquezas minerais que fossem encontradas e lavradas na colônia. Os minerais eram de propriedade do Estado e este outorgava o direito de lavra aos particulares que, em contrapartida, ficavam obrigados ao pagamento do quinto.2

Então, a partir do Brasil República, as Constituições foram dispondo sobre a matéria, mas foi com a Constituição Federal de 1988 que as atividades de exploração e os recursos minerais foram amplamente discutidos e tratados, tal Constituição estabeleceu um regime jurídico distinto entre a propriedade do solo e do subsolo. As jazidas minerais são bens da União e o seu aproveitamento é autorizado por ela, segundo a lei. Ainda, o texto dá tratamento sui-generis à hipótese de aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas.

As terras indígenas são também bens da União, mas destinadas ao usufruto exclusivo dos índios que tradicionalmente as ocupam. Este usufruto exclusivo se estende apenas às riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos existentes em suas terras, reconhecendo-se, no entanto, a sua exclusividade nas atividades de cata, faiscação e garimpagem, nos termos do Estatuto do Índio, acolhidos pela Constituição.

O sistema jurídico brasileiro deu proteção e reconhecimento aos direitos indígenas sobre o solo, mas tropeçou na separação entre bens do solo e riquezas do subsolo. A Constituição elencou que são bens da União os recursos minerais inclusive os do subsolo e mencionou que os indígenas possuem posse permanente da área que ocupam com usufruto exclusivo das riquezas que existem neste solo, mas não sobre o subsolo.3

A mineração, de acordo com Paulo de Bessa Antunes4, é uma atividade das mais polêmicas quanto aos impactos ambientais que produz. É altamente degradadora do meio ambiente e extremamente nociva à saúde, uma verdadeira ofensa aos direitos indígenas quando realizadas nestas terras. Utiliza-se de uma mão-de-obra, na maioria das vezes, desqualificada, de pessoas que vivem em condições subumanas. Produzem, pois, uma intensificada destruição dos povos indígenas, além de devastar a flora e a fauna e contaminar os rios com mercúrio.

A mineração em terras indígenas foi um dos temas mais debatidos e controvertidos no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988, porque os setores interessados na abertura indiscriminada destas terras exerceram enorme pressão para a liberação deste tipo de mineração. No entanto, a Constituição, nos artigos 176, parágrafo 1º e 231, parágrafo 3º, manteve condições específicas e restritivas para a pesquisa e a lavra mineral em terras indígenas.

Há restrições impostas pela Constituição Federal à mineração em terras indígenas, à lavra mineral, ao aproveitamento de recursos hídricos, à remoção das comunidades indígenas de suas terras tradicionais e à exploração de suas riquezas naturais, uma vez que estas atividades provocam danos ambientais irreversíveis e irreparáveis.

O intuito da Magna Carta, ao impor estas limitações e restrições quanto à mineração em terras indígenas, foi no sentido de assegurar aos índios a manutenção de sua organização social, costumes,Page 189 línguas, crenças e tradições (231, caput), bem como a preservação dos recursos ambientais necessários ao bem estar destas comunidades (231, §1º). Estes dispositivos não teriam nenhuma eficácia se não houvesse limitações à prática de atividades que causam prejuízos ao meio ambiente e às comunidades indígenas que vivem nestes locais.

As restrições da mineração se aplicam a qualquer projeto de mineração no território nacional, conforme o artigo 176, parágrafo 1º da Constituição. As jazidas, lavras e outros recursos minerais constituem-se propriedade distinta da do solo, pertencendo à União, assim como os subsolos...

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