Gentrificação e políticas de revitalização nos centros históricos no Brasil: processos que levam ao déficit habitacional

AutorGeorgia Patrícia da Silva; Sergio Figueiredo Feretti; Edileuza Sette
CargoUniversidade Federal do Maranhão (UFMA)/Universidade Federal do Maranhão (UFMA)/Universidade Federal de Roraima (UFRR)
Páginas83-91

Page 84

1 Introdução: pontos e contrapontos das políticas de revitalização

Tem-se visto nas últimas décadas uma intensa implementação de políticas de revitalização nos centros históricos brasileiros principalmente com a justificativa da necessidade de preservar os bens materiais e imateriais dessas áreas consideradas patrimônio histórico e cultural. O termo patrimônio é normalmente usado para remeter à idéia de herança de bens e valores representativos de uma nação, ou seja, algo a ser deixado ou transmitido para as futuras gerações.

De acordo com (BOGÉA et al, 2007), patrimônio cultural é o conjunto de bens que possui valor histórico, artístico, científico ou associativo e que define, em diferentes escalas, a identidade de uma comunidade, um Estado ou uma Nação, devendo ser preservado como legado às gerações futuras. Mas, Funari (2001) instiga com a idéia de que patrimônio, como “referência aos monumentos herdados das gerações anteriores”, remete a um caráter subjetivo, a uma relação de afetividade de símbolos do passado com olhar do presente, pois os nexos entre o bem cultural e a sociedade vão além dessa relação; o caráter político e econômico torna-se intrínseco. Com a atual importância dada ao patrimônio pelo poder público reconhece-se não apenas o seu valor cultural, mas também o seu potencial como mercadoria de consumo cultural. (RODRIGUES, 2001)

Nessa perspectiva, observa-se que as atuais práticas de intervenção urbana têm buscado embelezar estrategicamente as cidades históricas por meio das políticas de preservação cultural, com impactos ainda pouco estudados. O Estado, na maioria das vezes, é o maior promotor dessas políticas beneficiando grandes redes empresariais na tentativa de inserir o espaço no mercado global. Assim, as políticas públicas voltadas para a preservação do patrimônio ganham importância cada vez maior para as nações com a entrada do novo milênio. Nelas são eleitos centros urbanos que se tornam objetos de reorganização espacial, inserindo-os nos atuais sistemas produtivos.

As propostas de valorização das áreas consideradas patrimônio firmam-se pelo discurso desenvolvimentista e pela promessa de geração de emprego e renda, principalmente quando associadas a sua inserção na rota do turismo; sendo a atividade turística um produto da sociedade capitalista industrial que se desenvolveu sob o impulso de determinações e motivações diversas, dentre elas o consumo de bens culturais. (RODRIGUES, 2001) Mas essa abertura ao “outro”, proporcionada pelo atendimento de um mercado consumista, indubitavelmente é acompanhada da construção de espaços artificiais de cultura, diversão e lazer, resultando em hibridações de valores diversos. (CARVALHO, 1996).

O processo mercadológico que permeia oferta e procura impõe tensões cotidianas às culturas herdadas na medida em que a implementação da lógica capitalista cria modelos de referência comuns a todos que habitam nessas áreas buscando uniformizar tradições em torno de pretensos interesses econômicos; tendo, por fim, a imposição de “costumes nacionais” que se sobrepõem às memórias particulares e regionais. Nesse processo de imposição de modelos, Zukin (2000). ressalta que vão sendo criadas as paisagens de poder em detrimento do vernacular.

O termo vernacular refere-se à construção edificada quanto às relações sociais levadas a termo pelos desprovidos de poder. Essas duas esferas estão em contraste e freqüentemente em conflito. Na prática, o processo de gentrificação está permeado por tensões entre as instituições poderosas, entre a quais se situa o Estado, com o objetivo de construir novas paisagens em razão do lucro. (ZUKIN, 2000).

Na prática, o patrimônio passa a constituir uma coleção simbólica unificadora criando uma base cultural idêntica a todos, embora os grupos sociais e étnicos presentes em um mesmo território sejam diversos. (RODRIGUES, 1995) Mesmo com as resistências dos desprovidos de poder, torna-se inevitável a criação das paisagens de poder pela ação do capital privado que tem o apoio maciço do Poder Público para viabilizar os projetos e interesses dos empresários, o que acaba transformando as áreas históricas em lugares exclusivos de uso comercial, afastando a idéia de centros residenciais.

No Brasil, o processo de elitização dos espaços resultantes de certas políticas de revalorização urbana assemelha-se à gentrificação ocorrida nos países centrais por desencadear uma série de ações articuladas que interferem na materialidade do espaço, incentivam a criação de novos pólos de atração e potencializam o interesse das classes mais abastadas provocando a exclusão da população devido, principalmente, à especulação imobiliária. Bernhardt (2008), revisitando um conjunto de autores, apresenta diferenças entre a gentrificação e o processo de revitalização, reforma ou desenvolvimento urbano, mas, para Botelho (2005), em muitas circunstâncias a revitalização passa a significar gentrificar, pois significa intervir numa determinada realidade e elitizar.

As políticas de revalorização têm primado pela intervenção no patrimônio histórico edificado principalmente na recuperação da infra-estrutura (energia, telecomunicações, saneamento, água e reformas de casarios) como forma de incentivo à reativação da economia local, com vistas à inserção do espaço na reprodução do capital. Para Leite (2007), esse tipo de intervenção urbana nos espaços da vida cotidiana pública tem como resultado mais visível a alteração da paisagem urbana, com a transformação de sítios históricos degradados em áreas de entretenimento urbano e consumo da cultura. A apropriação cultural tornouse uma estratégia de aumento do valor econômico. (HARVEY, 1992) Nesse sentido, os centrosPage 85 tradicionais parcialmente modificados, em função de sua adequação funcional e simbólica, ganham cada vez mais complexidade e vultuosidade pela nova centralidade, gerando profundas transformações na configuração espacial das áreas remodeladas, bem como uma incisiva (re)organização em suas sociabilidades públicas. A centralidade pode ser concebida enquanto um “espaço de prestígio, dotado de uma considerável capacidade de convergir diversos grupos sociais e de catalisar uma gama de novos serviços, negócios e lojas, os quais estão majoritariamente voltados para as camadas mais abastadas da população”. (LIMA, 2007).

Tem-se se visto nos programas de revitalização dos centros históricos do Brasil uma concepção que dá grande ênfase à revalorização urbana e à proposta de melhoria do lugar para o usufruto dos seus cidadãos. A preservação passa a ser promovida como uma reapropriação do espaço por seus moradores, com melhoria da qualidade de vida e criação de emprego e renda, além da melhoria da estrutura física do ambiente. Por conseguinte, a comunidade apóia a implementação por almejar usufruir do patrimônio remodelado, uma vez que são os detentores de direito, por imprimem ao espaço a identidade, podendo utilizá-lo e até mesmo preservá-lo. Contraditoriamente, Zukin (2000) afirma que, geralmente, os que criaram o lugar são expulsos pelos aluguéis e preços mais altos.

O processo de melhoramento urbano e deslocamento devido à ação do mercado privado repelem os que idealizaram e criaram o espaço devido ao fomento da especulação imobiliária. Como conseqüência tem-se a “higienização social”, processo de retirada de antigos moradores e usuários, bem como das práticas a eles relacionadas. Isso gera um déficit de moradias fazendo com que essas pessoas saiam de seu habitat para viverem em torno das áreas tombadas ou nas periferias.

No Brasil, exemplos de revitalização dos centros históricos que expressam o processo de gentrificação, nas últimas décadas, podem ser encontrados, dentre outras, nas cidades de Salvador, Recife e São Luís. Ao primarem pelo embelezamento por meio da reurbanização e reordenamentos habitacionais, promovendo a requalificação de edifícios históricos e a criação de novos espaços de cultura, diversão e lazer, tiveram, como conseqüência, a exclusão de um modus vivendi que seria justamente a contraparte humana dos edifícios tombados. (PONTES E OLIVEIRA, 2007).

A partir dessa problematização, o presente artigo tem o objetivo de fazer uma discussão teórica e crítica sobre as políticas de revitalização ocorridas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT