Eficácia nas Relações entre Particulares

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas225-240

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4.1. Fundamento histórico

Os direitos fundamentais despontaram historicamente como resposta à necessidade de proteção contra os poderes do Estado. Surge aí uma eficácia vertical: cidadão/Estado. Essa eficácia não se estende, porém, às relações entre particulares (eficácia horizontal: cidadão/cidadão). Se, nas relações entre o cidadão e o Estado, o primeiro há de estar municiado para defender-se contra a prepotência do outro (direitos fundamentais como direitos de defesa, Abwehrrechte, oponíveis ao Estado)1, nas relações entre particulares, concretizadas em negócios jurídicos sob a égide da autonomia privada, incidem as normas jurídicas destinadas a defendê-los uns dos outros. Já que os particulares não dispõem de poderes de autoridade, situam-se todos no mesmo patamar de igualdade e seus interesses são regidos por normas de direito privado, sem possibilidade de invocação dos direitos fundamentais. Os eventuais conflitos de interesses são compostos pelos tribunais mediante simples aplicação da lei, além de institutos típicos de direito privado, como a ordem pública, a boa fé, a fraude à lei, os bons costumes2.

Por tais razões, os direitos fundamentais não se aplicariam às relações entre sujeitos de direito privado, pois prevaleceria o princípio da autonomia da vontade. Poderiam então ser celebrados negócios jurídicos contrários aos direitos fundamentais. A diversidade de situações justificaria a conclusão: como lembra Roberto Alexy, "a relação Estado/cidadão é uma relação entre um titular de direito fundamental e um não titular de direito fundamental; ao revés, a relação cidadão/cidadão é uma relação entre titulares de direitos fundamentais"3.

4.2. Relevância prática

A questão assume indiscutível relevância prática: se não é lícito ao Estado operar discriminações por motivo de sexo, raça, estado civil, idade,

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convicção política ou religiosa, cabe indagar se uma entidade privada poderia proceder a distinções deste tipo4.

Canotilho esclarece que o tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (isto é, a questão da incidência dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, como limite à autonomia negocial) era debatido na doutrina alemã como "eficácia externa" ou "eficácia em relação a terceiros" (Drittwirkung) e na doutrina norte-americana, como state action. Hoje, na doutrina germânica, prefere-se a expressão "efeitos horizontais" (Horizontalwirkung) ou a fórmula "eficácia dos direitos na ordem jurídica privada" (Geltung der Grundrechte in der Privatrechtsordnung)5. Nos Estados Unidos, trata-se do assunto como uma questão de imputação, no sentido de se averiguar se o ato do particular que atinge direitos fundamentais pode ser imputado ao Estado. Em outros termos, apura-se se a ação privada pode ser qualificada como state action, ou seja, se foi praticada por intermédio do Estado6.

Em Portugal, a questão foi solucionada por meio de disposição constitucional: nos termos do art. 18, n. 1, da Constituição de 1976, "os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas". Ainda assim, Vieira de Andrade entende que a transposição direta dos direitos fundamentais para as relações entre particulares só pode ser aceita "quando se trate de situações em que pessoas coletivas ou indivíduos disponham de poder especial sobre (outros) indivíduos7. Além disso, discute-se em doutrina como e de que forma opera a eficácia das normas que consagram direitos fundamentais na ordem jurídica privada. Formularam-se duas teorias: 1ª - a da eficácia direta ou imediata; 2ª - a da eficácia indireta ou mediata. Segundo a primeira teoria, os direitos fundamentais incidem diretamente nas relações entre particulares, pois têm eficácia absoluta e, em consequência, os indivíduos podem invocar os referidos direitos sem necessidade de mediação concretizadora do poder público. De acordo com a segunda teoria, o dispositivo constitucional não seria dotado de eficácia plena: ele vincula apenas o legislador, de modo que os direitos fundamentais incidem apenas indiretamente nas relações privadas.8

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Na Alemanha, a Constituição, de 1949, prevê, no art. 1º, inciso III, a vinculação aos direitos fundamentais apenas dos poderes estatais (executivo, legislativo e judiciário), o que impediria sua extensão às entidades privadas9.

Segundo o parecer de Konrad Hesse, "os direitos fundamentais, em geral, não podem vincular diretamente privados". A eficácia direta dos direitos fundamentais sobre as relações privadas, nas quais os sujeitos participam de forma igual da proteção por eles dispensada, acarretaria restrição inadmissível à autonomia privada, podendo alterar o próprio significado do direito privado. Contrariamente ao que ocorre na relação cidadão/Estado, os direitos fundamentais atuariam simultaneamente a favor e contra os sujeitos de direito privado. Admite ele, contudo, a ingerência dos direitos fundamentais nas relações jurídico-privadas quando se trata da proteção da liberdade pessoal contra o exercício do poder econômico ou social. Neste caso, da mesma forma como na relação do particular com o poder estatal, a medida mínima de liberdade está posta em perigo. Para garantia da liberdade do particular situado em posição de sujeição ao poder econômico social do outro sujeito, admite-se a incidência dos direitos fundamentais, como elementos da ordem objetiva da coletividade10.

Com base no reconhecimento do duplo caráter dos direitos fundamentais (direitos subjetivos do particular e elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade)11, a doutrina debate separadamente a questão dos efeitos horizontais dos direitos fundamentais e do princípio de igualdade.

4.3. Os efeitos horizontais dos direitos fundamentais

A tese da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais enfrentou a princípio forte resistência doutrinária. Argumentava-se que a eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas constituiria uma ameaça à liberdade, sendo necessário garantir a liberdade da vinculação privada, já que o ordenamento jurídico, no Estado de direito, assegura a cada indivíduo plena autonomia de decisão nos seus assuntos particulares12. A definição da República Federal da Alemanha como Estado social (Constituição de 1949, art. 20, n. 1) suscitou a questão da Drittwirkung (eficácia perante terceiros), porque, como escreve Ingo olfgang Sarlet, "no Estado social de direito não apenas o Estado ampliou suas atividades e funções, mas também a sociedade cada vez mais participa ativamente do exercício do poder"13.

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A auxese do Estado do pós-guerra em toda parte, aliada à crescente participação da sociedade na vida prática, econômica e social, provocaria a invocação dos direitos fundamentais, cuja aplicação não deveria restringir-se ao âmbito das relações entre o Estado e os particulares, mas deveria também estender-se à esfera jurídico-privada. Os direitos fundamentais assumem o caráter de valores absolutos, e se os direitos fundamentais - observa Ernst Forsthoff - são valores absolutos, isto é, considerados em si e com eficácia erga omnes, a eficácia perante terceiros é uma consequência inevitável, ficando superada a sua compreensão como direitos de defesa apenas contra o Estado. Mas a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, atenta a sua característica de valores, ocorre sob a forma de valorações, que só são compreensíveis de acordo com os critérios subjetivos de quem avalia. Assim - arremata ele -, "a jurisprudência se torna o verdadeiro padrão de uma sociedade não mais livre, porém submetida a valores, ou melhor, dependente de avaliações"14.

A despeito das críticas que a tese da Drittwirkung sofreu e apesar da resistência que ela enfrentou inicialmente assim na doutrina como na jurisprudência15, aos poucos, progressivamente, impôs-se a aplicação dos direitos fundamentais no âmbito das relações entre particulares, como limite negativo à autonomia privada. Reconheceu-se que os direitos fundamentais ostentam uma força conformadora potencialmente expansiva a todo ordenamento jurídico, não se restringindo ao âmbito das relações Estado/ indivíduo. É o que se denomina, em doutrina, "produção de efeitos irradiantes dos direitos fundamentais"16. Vários motivos determinaram essa evolução, os quais serão adiante sumariamente examinados.

4.3.1. O apelo às cláusulas gerais

O apelo às cláusulas gerais deve ser desde logo considerado. O próprio Konrad Hesse, hostil em princípio à tese da Drittwirkung, admite aplicação dos direitos fundamentais para a interpretação dos conceitos indeterminados em cada caso particular17. Na lição de Gilmar Ferreira Mendes, apoiada na jurisprudência do Tribunal Constitucional da Alemanha, "um meio de irradiação dos direitos fundamentais para as relações privadas seriam as cláusulas gerais (Generalclauseln) que serviriam de porta de entrada (Einbruchstelle) dos direitos fundamentais no âmbito do Direito Privado"18.

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4.3.2. A limitação da autonomia privada

Segundo aspecto: a questão da limitação à autonomia privada. Argumentava-se que o reconhecimento de uma...

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