Cidadania e sensibilidade na Ecologia Política

AutorJoão Martins Bertaso
CargoDoutor e Mestre em Direito pela UFSC. Professor dos cursos de Graduação e Mestrado em Direito da URI-Santo Ângelo. Consultor<i> ad doc</i> para avaliação das condições de oferta dos cursos de Direito (SESu, INEP/MEC); Pesquisador em Direito, Cidadania e Psicanálise.
Páginas41-60

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A minha investigação de método parte, não do solo firme, mas do solo que desaba.

Edgar Morin

Considerações para efeito de compreensão

A Ecologia Política2 é uma proposta considerável surgida na segunda metade do século passado, como alternativa teórica de compreensão da crisePage 42ambiental global. Encaminha uma reflexão sobre a política e sobre a atitude/pretensão do homem em senhorar-se do meio e da natureza. A noção de que a ecologia política possui duas dimensões interdependentes: um saber acadêmico de cunho transdisciplinar e um referencial inspirador de movimentos sociais e ambientais de formação cidadã. De onde decorreram movimentos difusos que foram construindo, junto à sociedade civil, bases novas para se pensar as Ciências Sociais. Importa neste ensaio questionar a dicotomia que foi sedimentada no mundo ocidental a respeito da natureza e da cultura. Tal visão fez surgir a crítica ambiental da sociedade industrial, bem como os movimentos, já referidos, políticos e acadêmicos. De modo especial, como uma crítica ao sistema capitalista de produção e aos danos irreversíveis causados por tais práticas predatórias ao meio e à cultura.

O fato de os ecossistemas estarem ameaçados torna compreensível os insistentes recados dos ecologistas e ambientalistas que, inicialmente, foram considerados exagerados, decolores ideológicos, prognósticos pessimistas e antievolucionistas, já na última quarta do século XX. Tais alertas confirmam-se paulatinamente pelos sintomas emanados da natureza: degelo dos pólos, mutações climáticas, desaparecimento de espécies de micro e macro vidas, temperaturas ascendentes, rompimento das cadeias dos sistemas vivos, catástrofes urbanas, entre outros, fazem um conjunto de fenômenos respeitantes à maneira explorativa/ depredante humana de “viver da terra” (grifei) e de seus recursos.

E, já faz alguns anos, sabe-se que não há solução técnico-científica, como, ingenuamente, pensava-se até os anos 70 do século XX.3 Os fatos do mundo natural, bem como os dados sobre experiências empíricas e as últimas projeções/ alertas do mundo científico têm despertado, ainda que sonolentos, os manipuladores de decisões sobre o futuro do modelo de produção atual. De sua vez, aumenta consideravelmente a consciência da cidadania a respeito da questão ecoambiental, em especial, no âmbito da sociedade civil organizada, como é o caso das ONGs e das associações, as mais diversificadas, urbanas e rurais.4 Vive-se o despertar dePage 43um paradigma da sensibilidade5 que repercute/perpassa a administração pública estatal, a sociedade civil, o indivíduo e a humanidade, vindo, no âmago de tal saber/ consciência, uma nova dimensão de cidadania, ou, como queira, a cidadania vivida de forma sensível, uma forma ecológica de “andar” no mundo, de proteção e cuidado, um pouco daquilo que Warat (2000) chama de Ecocidadania. O propósito imanente nesse paradigma é a reversão das práticas de se viver da Terra, pela necessidade de se “viver na Terra” (grifei), tal qual um caminhar cauteloso, prudente e sensível, em busca de um ponto de equilíbrio/sustentação na relação do homem com o meio/natureza.

A questão ambiental não está mais restrita aos movimentos ambientalista, tornou-se uma problemática da sociedade humana global. Tal questão implica uma crise social, ambiental e cultural, que vai se colocando/reafirmando como a principal agenda deste início de século XXI, e implica as condições de possibilidades de manutenção da vida no/do planeta. Teríamos chegado ao “ponto de não-retorno ambiental”, conforme previu a cientista australiana Lorraine Elliott, já em 1992? Ou teríamos iniciado uma experiência ímpar, segundo o geógrafo brasileiro Milton Santos, na qual os cidadãos mundiais terão no século XXI a oportunidade de conhecer o conhecimento que rege o planeta, para o qual o “período histórico atual vai permitir o que nenhum outro período ofereceu ao homem, isto é, a possibilidade de conhecer o planeta extensiva e profundamente” Santos (2000: 31). A consolidação desse novo conhecimento implica sensibilidade para viabilizar a escuta dos sinais da vida, de modo a sustentar a coexistência do homem e demais espécies vivas. A propósito, sobre os sinais emitidos pela natureza, serão melhor percebidos a medida do surgimento de um sujeito eco-sensível, constituído no conjunto das complexas relações que inclui o meio, a cultura e as práticas sociais decorrente de um conhecimento também complexo; reconhecido como integrante e parceiro do meio, e resultado de um processo de re-sensibilização da cidadania.6

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1. Caleidoscópio ecológico

A percepção de finitude do planeta e de seus sistemas vem gerando desde os anos setenta do século passado um sentimento de impotência que repercute no “mundo científico”, na classe política e nas democracias. E, ainda, é mais forte o sentimento de indignação dos cidadãos a respeito de seus representantes que, após eleitos, se envolvem em políticas estranhas à cidadania, quais sejam, políticas pautadas num viés economicista, que se fazem depredando o meio ambiente, os recursos escassos, gerando pobreza e exclusão social.

Sabe-se que o modelo de desenvolvimento, de base capitalista industrial, acentuado fortemente desde o século XIX, desencadeou uma crise moral e política profundas, a partir das quais se fizeram os movimentos sociais de cunho ambiental e ecológico, que extrapolaram muito rapidamente as fronteiras territoriais dos Estados7. Concomitante à percepção de que o saber instrumental que propunha sanar tudo tecnicamente, qual seja, de poder recuperar os danos causados pelo sistema produtivo com as soluções técnicas apropriadas, ter vazado irremediavelmente, com a percepção dos sistemas complexos que sustentam/ compõem a vida.8

Assim, a proposta de um Desenvolvimento Sustentável9 veio no âmbito dos movimentos ecológicos e serviu de contraponto ao processo econômico baseado na apropriação, dominação e exploração exaustiva dos recursos naturais na perspectiva da produção e do lucro. Questionou-se a degradação ambiental, o esgotamento dos recursos não renováveis, o desequilíbrio dos ecossistemas (que integram o patrimônio universal) e todas as formas de destruição da vida e do meio ambiente. Tais movimentos impuseram ao modo de produção da Modernidade seus primeiros limites, com respeito à preservação da vida, em nível local e global. Desse modo, os movimentos ambientalistas e ecológicos passaram a ganhar força, na medida em que perquiriam dos porquês das ações tecnológicas voltadas para talPage 45modo de desenvolvimento; e uma nova consciência ecológica se potencializou, potencializando, por sua vez, novas formas de participação da cidadania, vindo a minar as bases de sustentação dos procedimentos do homo faber. Suas questões básicas remetiam a forma que se está fazendo o desenvolvimento, para quem e por quê. Tiveram papéis destacados as Organizações não-Governamentais (ONGs)10 que, atuando em rede, ampliaram numa dimensão planetário tais movimentos; desde então, impõem-se como contratendência ao capitalismo globalizado e vêem consolidando formas alternativas de viver e de resistir para além dos contornos nacionais, a cidadania de cunho ambiental. Por meio das lutas ambientais e ecológicas, politizaram e publicizaram questões até então tidas como exclusivas dos Estados nacionais,11 tais como: a preservação de ecossistemas, a manipulação e o armazenamento de produtos nucleares e, de forma especial, as migrações por razão de sobrevivência (os refugiados do clima). A modelagem da vida social, a padronização produtiva e a homogeneização dos padrões culturais (dos valores), a mundialização dos mercados e a conseqüente exclusão de grandes contingentes humanos das condições de civilidade, demarcam, desde então, o caráter mundializado dessas demandas planetárias.12

Com essas novas práticas sociais, emergiram novos modos de a cidadania realizar-se, acreditando a construção de relações mais equilibradas entre o homem e o meio/natureza, norteadas, em especial, por uma economia adequada às possibilidades de produzir-se o que pode ser reposto à natureza. Essas novas demandas de cidadania causaram repercussão, sobremaneira na concepção de democracia, agregando questões referentes à preservação da vida em todas as suas formas. Ressalta-se que tais movimentos ambientalistas e ecológicos se pautam na ética de cuidados pela vida, pelo que veio a desencadear forte sentimento de solidariedade em suas ações, tanto em nível local, quanto àquelas interconectadas planetariamente, de onde surgiu a premissa do agir local e do pensar global.

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De tal forma, a ecologia política pode se colocar como um conhecimento reflexivo e afeito à ética da vida, âmbito em que a realização da cidadania estaria vinculada à prática efetiva dos direitos humanos. De modelo nacional, a cidadania, afeita à dogmática jurídica, acomodou-se no exercício e nas práticas do poder estatal, tornando-se um ritual repetitivo que aprisiona sua dimensão reflexiva e seu potencial político. E é bem por isso que a cidadania, restrita a tal viés, aceita uma verdade fora do cidadão, de modo que a legitimação do processo se faz dessa artificialidade: uma representação mecânica que perde força pelos procedimentos no cotidiano da representação política. Assim, o cidadão enquanto fonte/base do poder instituído desidrata politicamente em tal delegação que, absorvida pela/na lógica do(s) mercado(s), abre uma lacuna oceânica entre os interesses locais comunitários e aqueles pautados oficialmente nos foros do...

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