Clientelismo e seletividade: desafios às políticas sociais

AutorErni J. Seibel - Heloísa M. J. de Oliveira
Páginas136-145

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Introdução

A proposta* deste trabalho é destacar uma questão clássica na literatura das Ciências Sociais e crucial no campo das Políticas Sociais, ou seja, o clientelismo. Consideramos que este fenômeno é internalizado pela burocracia e também pelos segmentos sociais como práxis política corrente. Ele não só orienta as relações entre Estado e sociedade civil, mas configura a prática da gestão das políticas sociais e promove a seleção social do acesso à proteção social, filtrando demandas sociais e comprometendo os princípios clássicos de universalidade e da eqüidade.

Analisaremos na primeira parte o clientelismo, suas características principais e seus condicionantes históricos no cenário institucional brasileiro. Na segunda parte, resgatamos o debate sobre o conceito de seletividade, como prática político-administrativa, a partir de seus pressupostos políticos e sociológicos. Finalmente, buscamos identificar e qualificar o fenômeno do clientelismo como prática seletiva, como um modus operandi , dotado de uma racionalidade que orienta e organiza as políticas sociais.

O clientelismo como cultura política

Graham (apud ALONSO, 1997) analisa as relações entre público e privado no Brasil do século XIX, sugerindo a existência de uma aliança entre elite central e chefes locais, mediada pela patronagem. O caráter estruturador da patronagem vinha da troca de empregos por votos, estabelecendo uma cadeia de relações de dependência, que colocava os vínculos público e privado em fluxo contínuo. No entendimento de Graham (1997), o clientelismo constituiu a trama de ligação da política no Brasil sustentando, virtualmente, todo ato político. A vitória eleitoral sempre dependeu do uso competente dessa forma de relação, perpassando a concessão de proteção, cargos oficiais e outros favores, em troca da lealdade política e pessoal. A atenção à trama clientelista sobrepunha-se aos esforços de organização de interesses econômicos ou ao fortalecimento do poder central. Com isso, as elites “gastavam a maior parte de sua energia na formação de redes de clientelismo, ampliando seu séqüito ou encontrando um protetor poderoso para suas fortunas políticas” (GRAHAM, 1997, p.22).

Ao mesmo tempo em que sustentava a parafernália do Estado, o clientelismo se tornava uma razão em si, pois fortalecia o círculo “apadrinhamento-eleições-apadrinhamento”, baseado na troca de gratidão por favor (GRAHAM, 1997, p.229).

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Esse sistema formava uma extensa trama de ligações, constatação que leva o autor a afirmar que o clientelismo gerou o Brasil. Os motivos que fundamentavam os pedidos para obtenção de nomeações ou favores, destinavam-se, em primeiro lugar, a membros da família do solicitante e, posteriormente, a amigos, correligionários ou colegas de governo 3 . Destacavam-se as “boas ligações” do pretendente aos cargos e favores com o próprio sistema clientelista, em outras palavras, a lealdade política, o mérito do candidato, sua competência e conhecimentos técnicos, o lugar social do pretendente e, ainda, os valores paternalistas do missivista que qualificava os candidatos a favores como “candidato pobre”, “candidato com família grande para sustentar”, “candidato velho ou doente”, “bom pai de família” ou “bom filho” (GRAHAM, 1997, p.332). Esses critérios legitimavam a concessão de benefícios, fortalecendo a crença de que o fator mais importante para se galgar posições pretendidas seriam os vínculos familiares, as alianças partidárias e as relações entre amigos. Não é por acaso que “a troca de apadrinhamento por serviços e lealdade continua sendo um sinal visível até nossos dias” (GRAHAM, 1997, p.271).

Schwarz (1991, p.16) igualmente contribui para a compreensão do cenário em que se desenvolve o clientelismo no Brasil, quando informa que a colonização brasileira produziu, com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”. Como a relação entre os dois primeiros é clara, o autor destaca o terceiro, pois, não sendo nem proprietário nem proletário, dependia da dádiva 4 e do favor para ter acesso à vida social.

A lógica da dádiva e do favor tornou-se o conteúdo principal dos vínculos políticos e sociais, operando nas esferas da vida particular e privada as questões que, numa sociedade de direitos, deveriam ser fixadas como de caráter público.

Abranches (1989) atualiza essa equação histórica, analisando a dinâmica decisória no interior das instituições públicas contemporâneas. Segundo o autor, prevalecem ainda hoje duas lógicas de ação política, que correspondem a perfis de grupos de interesses, os quais o autor denomina clãs e facções e que se diferenciam da lógica do mercado. As facções afirmam uma lógica conflitiva nas transações. Os conflitos produzidos na disputa por recursos e vantagens públicas não acarretam, necessariamente, competição pela sucessão de posições entre as facções.

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A informação básica que define a avaliação das transações é o grau de privilégio ou garantia institucional. Os clãs, por sua vez, diferenciam-se do mercado e das facções, porque neles prevalecem normas de reciprocidade e de confiança interna. O que predomina nos clãs é a desconfiança em relação aos outros. A informação básica para a avaliação das transações é a tradição e, mais amplamente, os valores. Ambas resistem ao imperativo de uma lógica burocrática, no sentido weberiano. Esta, conforme Abranches (1989, p. 16), é utilizada como uma “regra privada, de proteção aos protegidos”.

Como complementa Tavares (1982, p.138), o clientelismo se fortalece como “um sistema adscritivo de controle, distribuição e alocação dos recursos de poder e de influência”.

A prática política clientelista moderna pondera Avelino Filho (1994, p.227), é mais competitiva do que sua antecessora. Ela sobrevive, substituindo os antigos laços de lealdade pela oferta de benefícios materiais, de forma a evitar e dirimir conflitos. O patrono moderno, para o autor, é o broker , cujo poder depende de sua habilidade de operar como...

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