Coisa Julgada Inconstitucional?

AutorLaura Cunha de Alencar
CargoBacharel em Direito pela Universidade de Brasília (2º/2007).

A fartura de bibliografia sobre o instituto da coisa julgada atesta de forma bastante convincente que poucos debates jurídicos têm merecido atenção maior. No entanto, aqueles que optarem por se dedicar ao estudo do material acumulado chegarão à surpreendente conclusão de que os problemas crescem na proporção em que os juristas se estafam à procura das soluções, situação que o professor Barbosa Moreira bem delineou quando afirmou que “séculos de paciente e acurada investigação foram incapazes de produzir, já não diremos a aquietação das polêmicas, que subsistirão enquanto o homem for o que é, mas ao menos a fixação de uma base comum em que se possam implantar as multiformes perspectivas adotadas para o tratamento da matéria”1.

Na realidade, mesmo as obras que conseguiram oferecer um cuidadoso estudo dos seus variados aspectos não entregam respostas bastantes às inúmeras perplexidades que se têm manifestado nesses últimos anos – muitas discussões recentes mostram-se significativas e, várias vezes, mais fecundas do que as fáceis convicções em que parte da doutrina mais conservadora se compraz.

Assim, o problema para cuja reflexão se deseja fazer o convite é o controle daquelas decisões judiciais que albergam alguma inconstitucionalidade em seu conteúdo e não são mais passíveis de impugnação. Ou seja, busca-se motivar o estudo dos instrumentos hábeis a realizar o controle de uma decisão judicial que, sob a proteção da coisa julgada, avilta a Constituição, seja porque, por exemplo, dirimiu o litígio aplicando lei posteriormente declarada inconstitucional, seja porque deixou de aplicar determinada norma constitucional por entendê-la inconstitucional ou, ainda, porque decidiu de forma contrária a regra ou princípio diretamente contemplado na Constituição.

Propõe-se, portanto, um desafio respeitável: ou se permite a desconsideração da coisa julgada, nos casos em debate, de uma forma, a princípio, bastante frouxa, ou se nega a sua possibilidade de forma peremptória, assentindo com o atual regime de rescisão.

Em atenção à antiga observação de Cardozo em ter “aberto os ouvidos sacerdotais ao apelo de outras vozes” e ciente de que “as palavras mágicas e as encantações são tão fatais à nossa ciência quanto a quaisquer outras”2, buscou-se oferecer no pequeno escrito que ora se inicia, além do reconhecimento do problema, um estudo ponderado do debate.

O trabalho está dividido em três partes. Na primeira seção serão apresentadas noções preliminares do conceito de coisa julgada, tendo como referencial teórico a doutrina de Enrico Tullio Liebman, ainda que complementada por outros autores. Essa primeira parte pretende demonstrar que a noção de coisa julgada não é absoluta, apesar de sua fundamental importância no Estado Democrático de Direito.

A segunda seção analisará os impactos da existência de uma inconstitucionalidade em um pronunciamento judicial e a presença cogente do princípio da constitucionalidade, que atinge todos os atos estatais. Introduzirá de forma breve as possíveis hipóteses de sentenças inconstitucionais e oferecerá considerações terminológicas fundamentais para todo o trabalho. A parte segunda foi aquela que recebeu, especialmente, grande contribuição dos recentes debates sobre o instituto da coisa julgada. Os principais pontos de divergência são expostos ao longo de seus parágrafos e, enquanto são discutidos, constroem-se as premissas que servirão de base à parte subseqüente: as considerações finais do trabalho e a afirmação do seu real propósito.

Discorrer sobre a revisão do instituto da coisa julgada, nos casos de inconstitucionalidade, é tarefa intimidadora, pois toca no âmago dos fundamentos da cultura jurídica, podendo despertar reações extremas tanto de repúdio à sua desconsideração por uma possível e desnecessária vulneração do ordenamento jurídico quanto de indignação em relação a resultados processuais constitucionalmente ilegítimos.

Assim, confia-se que a investigação realizada forneça, ao final, não a resposta definitiva ao problema proposto, mas a construção de fortes premissas em relação ao tema.

1. Algumas considerações primeiras

Conforme se observará ao longo da leitura desse artigo, não se pretende subtrair, com as teses defendidas, a autoridade da coisa julgada ou mesmo a sua importância para o ordenamento jurídico. O que se planeja demonstrar na construção de seu conceito e problematização, feitas logo a seguir, é que “a coisa julgada, em resumo, é uma exigência política e não propriamente jurídica; não é de razão natural, mas sim de exigência prática”3.

A atribuição da autoridade da coisa julgada decorre de uma opção política entre dois valores: a segurança, representada pela imutabilidade do pronunciamento, e o ideal de justiça, sempre passível de ser buscado enquanto for possível o seu reexame. E é unicamente nos limites dessa escolha operada pelo legislador que existirá coisa julgada. Assim sendo, surge a noção de coisa julgada como um dado político:

Tais qualidades da sentença são postas não pela verdade (que nele pode estar contida ou não) ou pela justiça do julgamento realizado (sempre relativas), mas pela razão, de ordem política e prática, que impõe, em determinado momento, que o processo chegue ao seu final, encerrando a controvérsia.4

A coisa julgada não é instrumento de justiça. Ela não assegura, portanto, a justiça das decisões, trata-se mais de uma garantia de segurança, ao impor a definitividade da solução judicial. Representa, simplesmente, uma criação da lei, oriunda de imperativos de ordem política e social, como adverte Zavascki e bem sintetiza Lino Enrique Palacio quando afirma que “la cosa juzgada, sin embargo, no constituye un atributo esencial y necesario de la sentencia, sino una simple creación del ordenamiento jurídico, que puede o no acordar tal autoridad a los pronunciamientos judiciales definitivos sin com ello quede afectado principio lógico u ontológico alguno”5.

Dessa forma, o estudo, mesmo que breve, do conceito da coisa julgada e de algumas noções relacionadas ao instituto justifica-se, de maneira especial, quando se verifica quão longe se está de alcançar, no debate sobre a chamada “relativização da coisa julgada”, um consenso mínimo sobre a determinação de seus pontos iniciais. Assim, não causam espanto algum os resultados tão díspares que se verifica na análise do tema objeto da exposição 6.

2. Conceito de coisa julgada

A exposição não poderia iniciar de outra forma que não pela definição do que vem a ser o instituto chamado de coisa julgada.

A coisa julgada é o instituto jurídico-processual criado com a finalidade de conferir às decisões jurisdicionais uma necessária estabilidade, consubstanciada na impossibilidade de mudança de seu conteúdo.

O Código de Processo Civil ensaiou expor a sua definição em seu artigo 4677, mas foi impreciso em seus termos, não sendo suficiente para traçar os contornos do instituto. Aliás, a bem da verdade, o Código de Processo Civil definiu a coisa julgada de uma forma bastante questionável, valendo-se da negativa, ou seja, afirmando o que não faz coisa julgada. É claro que com a exclusão dos elementos constantes dos incisos do artigo 4698, conclui-se que será a parte dispositiva da sentença que se tornará imutável.

Não obstante, a coisa julgada não é um instituto confinado ao direito processual. Ela possui, especialmente, um significado político-institucional bastante acentuado, tanto que erguida a garantia constitucional:

Com esses contornos, a coisa julgada é mais que um instituto de direito processual. Ela pertence ao direito constitucional, segundo Liebman, ou ao direito processual material, para quem acata a existência desse plano bifronte do ordenamento jurídico. Resolve-se em uma situação de estabilidade, definida pela lei, instituída mediante o processo, garantida constitucionalmente e destinada a proporcionar segurança e paz de espírito às pessoas.9

A propósito, Liebman foi quem melhor definiu o conceito de coisa julgada, considerando-a, ao contrário do que pregava Chiovenda, não como um efeito autônomo da sentença, mas uma qualidade especial – autoridade – de que se revestem os seus efeitos, tornando-os imutáveis, em benefício da estabilidade da tutela jurisdicional10.

3. Segurança jurídica e Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito erige-se sobre alguns pilares fundamentais, sendo a estabilidade das decisões do Poder Público apontada como um deles. De fato, uma das características da transição do Estado Liberal para o Estado Social foi a tomada da segurança jurídica como verdadeiro pressuposto, e não apenas mera conseqüência, das liberdades e direitos fundamentais.

A doutrina clássica considerava a coisa julgada um instituto de direito natural, sem o qual a própria idéia de direito seria absolutamente uma ilusão, predominando a desordem nas relações sociais:

Os glosadores levaram essa noção aos seus exageros máximos. É o famoso o dístico de Scassia: “A coisa julgada faz do branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro”. 11

Ora, os valores privilegiados por um determinado ordenamento jurídico são assentados, sobretudo, em razão do momento histórico pelo qual atravessa a sociedade – impossível reflexão mais intuitiva. Assim, a depender do momento...

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