Comentários à legislação constitucional aplicável às pessoas portadoras de deficiência

AutorProfª. Regina Quaresma
CargoMestre e Professora de Direto Constitucional na Universidade Candido Mendes e na PUC-Rio.
Páginas1-28

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Introdução

"Um mapa do mundo que não inclua a Utopia, disse Oscar Wilde, não é digno de receber uma olhada, porque omite justamente o país em que a humanidade está sempre desembarcando.1 E quando a humanidade nele desembarca, vê mais longe um país melhor, para o qual se dirige. O progresso é a realização das Utopias."

Will Durant

Ao iniciarmos estes breves comentários sobre a legislação constitucional aplicável às pessoas portadoras de deficiência, devemos destacar a relevância de temas extraídos da Constituição, uma vez que estamos interpretando o texto que fundamenta a vida jurídica, em razão da supremacia hierárquica das normas ali estabelecidas. Page 2

A Constituição está no vértice do sistema jurídico do País, sendo a Lei Suprema do Estado, pois é nela que se encontram insculpidas sua estrutura e organização; é nela que encontramos as normas e princípios fundamentais do Estado.

Tomando como base a superioridade do elenco normativo constitucional estabelecido em 1988, optamos por desenvolver o trabalho desbastando os aspectos constitucionais específicos atinentes ao tema in examine. Para tanto, o estudo, mesmo que superficial, do princípio da igualdade foi necessário, na medida em que o tema tratado se baseia fundamentalmente na noção de igualdade e de dignidade da pessoa.

Serão analisadas normas constitucionais federais e estaduais a respeito do tema que tratam da matéria objeto de nossa temática, com a finalidade de buscar entender melhor quais os mecanismos jurídicos existentes para a efetivação da integração das pessoas portadoras de deficiência na sociedade brasileira.

I - A igualdade como princípio fundamental

A idéia de igualdade se vincula intimamente com a de democracia. Não é possível falar de democracia sem que se aborde a complexa questão da igualdade. Trata-se de princípio que norteia a discussão de como se compreender o Estado Democrático de Direito.

Antes de adentrar com maior profundidade na temática, é necessário frisar a importância de se debater e de se defender a igualdade atualmente. A doutrina neoliberal conquistou sua hegemonia ao longo das décadas de oitenta e noventa. Apesar de não ser mais enxergada como a única solução, continua obtendo conquistas notáveis nas áreas econômica e política. Tal doutrina prega abertamente a desigualdade como um valor em si mesmo; algo que era impensável no início do século, hoje é dito por Nozic, Hayek e Fukuyama com a maior tranqüilidade. Por esta razão devemos ressaltar qualquer iniciativa de defesa da igualdade como princípio indispensável para a estruturação da democracia.

O debate acerca da igualdade não é novidade; há alguns séculos já faz parte da agenda política. A título de exemplo, foi inspirado neste intrigante tema que Rousseau redigiu seu "Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens", publicado pela primeira vez em 1755. É um assunto que também inquietava a filosofia grega, além de estar presente nos fundamentos do cristianismo. Assim, percebe-se o quão relevante e complexa é a questão da igualdade. Page 3

Circunscrevendo-se esta noção no pensamento jurídico-político da modernidade européia, nota-se que foi a Revolução Francesa o grande fato político que primeiramente se orientou segundo o postulado da igualdade entre os homens. A liberdade, a igualdade e a fraternidade compunham o tripé sob o qual se fundou a ação revolucionária.

Naquele momento, a intenção principal era a derrubada do Antigo Regime (Feudalismo) e de sua forma de enxergar o mundo. Os privilégios que a nobreza e o clero detinham eram o principal alvo daqueles que compunham o chamado Terceiro Estado. A igualdade perante a lei era de fundamental importância para a burguesia emergente, que visava a trazer para suas mãos o poder político, gerando o Novo Regime (Capitalismo).

O princípio da igualdade era visto sob uma perspectiva meramente formal à época da Revolução Francesa. Apenas se intentava alcançar igualdade perante a lei, isto é, que o ordenamento jurídico tratasse todos os cidadãos isonomicamente, sem quaisquer distinções, eliminando-se os privilégios da nobreza e do clero. Formalmente, portanto, a ordem jurídica terminou por reconhecer a igualdade de todos os cidadãos.

Esta concepção de igualdade não tardou para apresentar suas fissuras. O simples reconhecimento legal de que todos eram iguais não foi suficiente para eliminar as desigualdades fáticas. A concretude dos fatos expunha a ilusão da formalidade do direito. De que adiantava serem todos iguais perante a lei se, na realidade, esta igualdade inexistia? O surgimento de uma classe operária e o conseqüente inchaço dos grandes centros urbanos durante o século XIX expôs uma contradição social violentíssima: a riqueza convivendo lado a lado com a pobreza; os operários livres e iguais juridicamente tendo de se submeter aos mandos e desmandos dos industriais; qualquer condição de trabalho por estes imposta era aceita de pronto pelos operários que "viviam da mão à boca"2.

Os movimentos operários vão se estruturando, o pensamento comunista ganhando notoriedade, o que leva à burguesia ter de ceder às reivindicações do operariado, sob pena de ver ruir aquilo que havia construído. As conquistas do operariado visavam à estruturação de um Estado mais sensível às causas sociais, à desigualdade econômica. Era necessária uma nova concepção de igualdade. Page 4

Surge para o mundo do Direito o que se conhece por isonomia material. Não é mais suficiente considerar todos iguais perante a lei; agora é preciso tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na exata medida de sua desigualdade. Além disto, exige-se que o Estado institua políticas públicas orientadas à redução da desigualdade econômica. Surgem os direitos sociais, que passam a impor ao Estado uma diferente forma de agir. Não mais se admite a simples passividade do Estado frente às questões sociais. A educação, a saúde, o trabalho digno são assuntos da maior relevância, pelos quais deve o Estado zelar, permitindo o acesso por parte de todos a estes bens. O Estado não é mais gestor de interesses; é um dos atores na promoção do bem comum, na constituição de uma sociedade igualitária.

Em que se constitui a igualdade, portanto? De onde provém esta noção? Se considerarmos que as sociedades do ocidente desenvolveram ao longo de sua história uma concepção de justiça, podemos notar que esta contém dentro de si a idéia de igualdade, de que os homens são iguais uns perante os outros. O sentimento de igualdade está além da concepção hobbesiana de igualdade, segundo a qual os homens são iguais porque podem matar uns aos outros (isto é, até o mais fraco dos homens pode aniquilar com a vida do mais forte), que se baseia na observação pura e simples.

A igualdade não pode ser reduzida a um fato físico, por assim dizer, como o fez Hobbes. Trata-se de uma compreensão cultural do ocidente que se baseia na intuição de que todos os seres humanos têm uma condição em comum: todos são humanos, detêm certas potencialidades e devem ser tratados com dignidade e de maneira a estimular a expressão destas potencialidades.

A igualdade está fundada no altruísmo, e não no egoísmo. Neste sentido, a intuição de Rousseau é bem mais palatável. O autor ao identificar o sentimento da piedade no interior de cada ser humano, verifica haver uma característica altruista em cada um; mesmo percebendo que o egoísmo termina por dominar este traço de altruísmo na maioria dos casos, há altruísmo. Isto é, existe solidariedade, os seres humanos são capazes de enxergar o outro, a diferença.

O reconhecimento da necessidade da igualdade, portanto, passa pela solidariedade, pelo altruísmo. A igualdade, diferentemente da liberdade, é conceito eminentemente relativo. Uma pessoa só é igual (ou desigual) se houver outra a ser comparada com ela. Ninguém é absolutamente igual ou desigual, apenas relativamente. A igualdade pressupõe a existência do outro, o seu reconhecimento enquanto pessoa, enquanto ser humano. Podemos afirmar, portanto, que o princípio da igualdade está intimamente vinculado à idéia de solidariedade; exatamente neste sentido dispôs a Constituição Federal de 1988. Ao dizer, em seu art. 3º, I que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, entende-se que na justiça e solidariedade se encontram os pressupostos para Page 5 se efetivar a igualdade, que será mencionada no caput do art. 5º. Sem compreensão de justiça que carregue em si a necessidade da igualdade e sem solidariedade, não se estrutura uma sociedade igualitária.

A igualdade, na medida em que se funda na solidariedade, pressupõe a adoção de políticas inclusivas. Sem inclusão é impossível haver igualdade. Uma sociedade igualitária é aquela onde os seres humanos têm amplas possibilidades de desenvolver as suas potencialidades; não apenas todos os seres humanos individualmente, mas também os segmentos étnicos, sociais, culturais e de gênero que são excluídos de certos âmbitos de uma determinada sociedade (minorias) devem ser reconhecidos, incluídos, de modo a se preservarem estes grupos e sua originalidade, preservar a diversidade e as potencialidades de cada um destes segmentos, permitindo sua expressão.

Talvez por envolver tantas questões de difícil solução (exclusão social e econômica...

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