A sociologia compreensiva e a interpretação de individualidades históricas: o papel do Verstehen na metodologia das ciências da cultura de Max Weber

AutorGilson Ciarallo
Páginas390-406

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O que apresento* a seguir consiste em reflexões que visam a contribuir para elucidar o papel da compreensão ( Verstehen ) nos quadros da sociologia compreensiva de Weber, especificamente no que se refere à interpretação das individualidades históricas. Nesse sentido, concentro-me nas considerações que esse autor faz sobretudo em seus escritos relativos à metodologia das ciências sociais.

Tendo em vista tal empresa, nos parágrafos apresentados a seguir, procuro dialogar com críticos e comentadores da obra de Weber acerca de aspectos referentes ao método das ciências da cultura, como várias vezes o denomina o próprio Weber. Esses diálogos dão ao tema escolhido direcionamento e dinâmica próprios, os quais, por diversas vezes, tive de silenciar, tendo em vista o caráter restrito do texto que ora apresento. Por esse motivo, restrinjo-me a alguns comentadores da obra de Weber que mais se debruçaram sobre as questões que aqui emergem. Por coincidência, dentre esses mesmos comentadores, Winch e Veyne raramente têm aparecido nas referências que se fazem a esse clássico da sociologia, considerando-se as publicações mais atuais. Dois outros autores, mais conhecidos na atualidade, lideram a interpretação do conjunto da obra Weberiana, ambos escreveram artigos e livros importantes nos anos 1970: Friedrich H. Tenbruck 2 ePage 391Wolfgang Schluchter 3 , cujas interlocuções merecem ser lembradas como importantes contributos para a confecção do quadro teórico geral no qual Weber é hoje acessado.

Atentando para aspectos essenciais dos escritos metodológicos de Weber, Winch (1970, p.107) discute a questão da “[...] relação entre adquirir uma compreensão interpretativa da significação (Sinn) de uma parte do comportamento e dar uma explicação causal do que produziu o comportamento em causa”. Tal discussão, a meu ver, possibilita vias de acesso bastante frutíferas, com vistas a melhor entendimento de aspectos da metodologia weberiana, os quais nem sempre recebem a atenção que merecem.

Uma dessas vias consiste na exploração do caráter lógico da compreensão interpretativa, apontado por Winch como sendo uma fonte de problemas para os quais Weber não dá solução adequada:

A maior parte do tempo refere-se a ela [compreensão interpretativa] como se fosse simplesmente uma técnica psicológica: alguém se colocar na posição do outro. Isto tem levado muitos autores a alegar que Weber confunde o que é simplesmente uma técnica de armar hipóteses com o caráter lógico da evidência dessas hipóteses (1970, p.107).

Dentre aqueles muitos autores a que Winch se refere, está Popper, o qual, a partir dos quadros de reflexão próprios da filosofia analítica, admoesta em favor do teste das hipóteses, devendo elas passar por um método de seleção por eliminação. Todavia, cumpre ressaltar que “sentido lógico” em Weber tem significado diferente daquele que é próprio dos estudos de lógica na filosofia moderna. Quase sempre, em Weber, esse sentido consiste na noção de adequação de circunstâncias, beirando a submissão a uma razoabilidade.

De qualquer modo, não é esse o quadro de pensamento que dá luz às considerações que Winch levanta contra Weber. Prova disso é o fato de que Winch chega a defendê-lo das críticas anteriores.

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Com vistas a tal defesa, reitera que Weber “[...] é particularmente insistente em reconhecer que mera ‘intuição’ não é bastante, devendo ser comprovada por observação cuidadosa” (Ibid . , p.107). As considerações de Winch nascem de uma outra tradição, cuja peculiaridade está na recorrência aos jogos de linguagem retomados de Wittgenstein. À luz dessa tradição, o progresso das ciências sociais depende mais dos métodos filosóficos do que daqueles desenvolvidos no âmbito das ciências naturais. Assim é que Winch acusa Weber de dar uma descrição errada do processo de verificação da validade das interpretações sociológicas sugeridas, posicionando-se num lado oposto àquele em que Popper, dentre outros, está situado:

Desejo, porém, discutir a sugestão que está implícita na afirmação de Weber de que Verstehen é algo logicamente incompleto, precisando ser suplementado por um método inteiramente diferente, ou seja, a coleta de dados estatísticos. Contra isso, quero insistir que, se a interpretação proferida é errônea, dados estatísticos, embora possam indicar que assim seja, não constituem a corte de apelação final e decisiva da validade das interpretações sociológicas, como sugere Weber. O de que se necessita, no caso, é uma melhor interpretação e não algo de espécie diferente. A compatibilidade de uma interpretação com os dados estatísticos não prova sua validade. Alguém que interprete os ritos mágicos de uma tribo como uma forma de atividade científica deslocada ou imprópria não será corrigido pela estatística do que os membros da tribo tendem a fazer nas várias espécies de ocasião em que se encontrem (Ibid., p.108).

Ao afirmar que o que falta é uma melhor interpretação e não algo diferente, Winch enfatiza uma concepção de Verstehen que incorpora a forma de compreensão dos jogos de linguagem ou das “formas de vida”. Em outras palavras, preconiza uma compreensão que procede essencialmente pela análise da linguagem: as normas que guiam a ação são compreendidas a partir das regras da comunicação lingüística cotidiana.

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Verstehen , assim considerado, satisfaz plenamente as pretensões de validade das interpretações sociológicas, sem qualquer necessidade de um apelo à prova:

Weber freqüentemente fala como se o teste final fosse nossa capacidade de formular leis estatísticas que nos habilitassem a predizer com apreciável exatidão o que as pessoas tenderiam a fazer em dadas circunstâncias. Nessa linha está sua tentativa de definir um “papel social” em termos da probabilidade (chance) de ações de certo tipo serem realizadas em certas circunstâncias. Mas diante do exemplo de Wittgenstein [refere-se ao exemplo da estipulação do preço da madeira a partir da altura de seu empilhamento], podemos bem ser capazes de fazer, por esse modo, predições de grande exatidão, sem, contudo, podermos pretender qualquer compreensão real do que as pessoas estariam fazendo. A diferença é exatamente análoga à diferença entre ser capaz de formular leis estatísticas sobre ocorrências prováveis de palavras numa língua e ser capaz de compreender o que está dizendo alguém que fale a língua. [...] “Compreensão” numa situação como essa é perceber o ponto ou o significado do que está sendo feito ou dito. Essa é uma noção muito afastada do mundo da estatística ou das leis causais; está muito mais próxima do reino do discurso e das relações internas que ligam as partes do reino do discurso (WINCH, 1970, p.109-10).

Ao leitor que não seja conhecedor profundo da sociologia weberiana, tais considerações de Winch podem fazer crer que Weber dá valor excessivo ao teste pelas vias estatísticas, beirando, a todo o momento, a formulação de leis com implicações preditivas. Ora, não é esse o traço marcante de sua sociologia. Ao contrário, seus escritos metodológicos constantemente chamam a atenção para a impossibilidade de, no estudo das individualidades históricas, chegar a leis gerais como aquelas a que chegam as ciências da natureza. Nesse sentido, o conhecimento nomológico não desempenha o mesmo papel nos dois grupos de ciência.

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No caso das ciências da cultura, deve ser entendido como sendo o conhecimento das regularidades das conexões causais, as influências que nos habituamos a esperar geralmente:

Se o conhecimento causal do historiador consiste na imputação de certos resultados concretos a determinadas causas concretas, então é impossível uma imputação válida de qualquer resultado individual sem a utilização de um conhecimento nomológico, isto é, de um conhecimento das regularidades das conexões causais. Para saber se cabe atribuir a um elemento individual e singular de uma conexão, na realidade, uma importância causal para o resultado que se trata de explicar causalmente, só existe a possibilidade de proceder à avaliação das influências que nos habituamos a esperar geralmente, tanto deste como de outros elementos do mesmo complexo, que sejam pertinentes à explicação. Essas influências constituem, por conseguinte, os efeitos “adequados” dos elementos causais em questão (WEBER, 1999, p.129).

Tais regularidades somente são acessadas por aquele que busca a explicação de um...

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