Conceito contábil de receita. Comitê de Pronunciamentos Contábeis-CPC - Pronunciamento Técnico do CPC-30

AutorNatanael Martins
CargoMestre em Direito Tributário pela PUC/SP. Advogado em São Paulo
Páginas86-103

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1. Introdução

O tema sobre o conceito e o momento de reconhecimento de receitas, seja na seara contábil, seja na seara de regras de tributação, é dos mais relevantes, pois, em linguagem contábil, é a partir "do reconhecimento de ingressos brutos de benefícios econômicos" no patrimônio da entidade empresarial que o resultado contábil começa a se definir, trazendo como consequência a deflagração de normas de tributação, sejam elas normas que estipulam a incidência de tributos sobre receitas - como é o caso da Contribuição para o PIS/PASEP e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social-CO-FINS -, sejam elas normas que estipulem a incidência de tributos sobre acréscimos patrimoniais (renda auferida) - como é o caso do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas-IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido-CSLL.

Nesse contexto, o estudo sobre o CPC-301que trata de Receitas é dos mais relevantes, eis que a sua abordagem por operadores do direito possibilita uma venturosa incursão pelas interfaces existentes entre normas contábeis e normas de tributação, hoje mais e mais necessária para a correta compreensão das variadas hipóteses de tributação cujos eventos, em primeiro lugar, são capturados pela contabilidade ao retratá-los como um fato jurídico de natureza contábil e, em segundo lugar, em havendo uma correlata norma de tributação, se e quando verificados, examinar como podem ou devem ser retratados como fato jurídico de natureza tributária.

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A importância desse estudo - sobretudo em face das novas regras contábeis implementadas a partir do advento da Lei 11.638/2007, que permitiu no Brasil a introdução do denominado processo de convergência à regras contábeis internacional, agora também regulado em correlatas regras de tributação em face da Lei 12.973/20142- é fundamental porque, como veremos, do conceito contábil de receita não necessariamente se extrai um correlato conceito jurídico de receita, questão absolutamente relevante em termos de tributação, principalmente em razão do PIS e da COFINS, cujas normas de incidência estipulam a receita auferida como materialidade, ou mesmo em face do imposto de renda no regime de tributação pelo lucro presumido, em que a renda se presume a partir das variadas fontes de receitas da pessoa jurídica.

Por isso, por questão metodológica, antes propriamente de falarmos sobre o CPC-30, faremos breve incursão sobre contabili-dade e direito, sobre o conceito jurídico de renda, bem assim sobre a tradução jurídica do regime contábil de competência, buscando alcançar, em face das variadas normas de tributação, se e quando as receitas se consideram realizadas para efeitos de deflagrar a incidência de tributos.

Daí, a seguir, veremos como o CPC-30 conceitua receitas e que regras prescreve para o seu reconhecimento, apontando, após, o conteúdo jurídico do conceito de receita, bem como buscando mostrar algumas diferenças entre normas contábeis e normas de tributação, tentando formular, por fim, as conclusões que alcançaremos.

2. Normas contábeis e normas de tributação - Dois corpos distintos de linguagem e de aplicação

A propósito deste tópico, tomaremos a liberdade de transcrever passagens de recente estudo que fizemos sobre a Medida Provisória 627/2013,3adaptando o que lá escrevemos à lei dela resultante, isto é, à Lei 12.973/2014.

Pois bem, a leitura da extensa e complexa Lei 12.973/2014 prova o que sempre dissemos a propósito da Lei 11.638/2007 - isso sem embargo da neutralidade tributária que proclamava: trata-se de norma que fora baixada para veicular regras de natureza contábil, demonstrando que o Poder Executivo, a exemplo do que se verificou quando do advento do Decreto-lei 1.598/1977, procurou adaptar a legislação tributária às regras emergentes da "nova contabilidade", deixando nela prescrito a distinta separação entre regras de contabilidade e regras de tributação, na medida em que buscou, para cada uma das grandes novas regras contábeis postas, uma correlata norma de tributação.

A exposição de motivos da MP 627/ 2013, quanto a isso, não deixa margem a dúvidas:

A presente Medida Provisória tem como objetivo a adequação da legislação tributária à legislação societária e às normas contábeis e, assim, extinguir o RTT e estabelecer uma nova forma de apuração do IRPJ e da CSLL, a partir de ajustes que devem ser efetuados em livro fiscal. Além disso, traz as convergências necessárias para a apuração da base de cálculo da Contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS.

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E nem poderia ser diferente, pois, como dissemos ao longo dos estudos que fizemos a propósito da Lei 11.638/2007, em face da norma de competência tributária outorgada pela Constituição e pelos princípios constitucionais próprios em matéria tributária, especialmente o princípio da estrita legalidade, seria inadmissível que normas de específica natureza contábil, muitas delas derivadas de competência outorgada à Comissão de Valores Mobiliários e a demais Reguladores de Mercado, pudessem alterar normas de tributação.

E o Poder Executivo, ciente de que as mudanças na "nova contabilidade" por muito tempo ainda se perpetuará, reiterando a clara separação entre normas de contabilidade e normas de tributação, inseriu na Medida Provisória uma regra, diríamos programática, retratada nos seguintes termos na Lei de conversão:

Art. 58. A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.

Parágrafo único. Para fins de disposto no caput, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas atribuições, identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais.

Da leitura desse dispositivo da Lei, pelo menos três importantes conclusões se extraem:

(i) estabeleceu diferenças permanentes entre regras contábeis e regras fiscais, criando, pois, dois distintos corpos de linguagem (normas contábeis e normas de tributação);

(ii) estabeleceu, a contrario sensu, que todas as novas regras contábeis existentes até a sua publicação, que não tiveram específica regulação, terão naturais efeitos tributário; e

(iii) estabeleceu, em norma de conteúdo programático (sim, pois do contrário haveria ofensa ao princípio da legalidade), que novas regras contábeis que vierem após a sua promulgação não terão efeitos tributários, se e enquanto não vier correlata norma de tributação.

Dito de outra forma, para as regras contábeis então vigentes ao tempo de publicação da Lei 12.973/2014, que não tiveram específica regulação, como é o caso do CPC-30 que trata de Receitas, este, para todos os efeitos, terá direta aplicação na formulação de fatos contábeis de natureza tributária, salvo se a sua aplicação colidir com princípios maiores emergentes da Constituição Federal, como sucede com os conceitos de renda e de receita, nela pressupostos.

E a forma prescrita pela Lei 12.973/2014 para a completa separação das regras contábeis e das regras de tributação do imposto de renda e da CSLL, alterando o Decreto-lei 1.598/1977, foi a de proclamar a existência de uma única contabilidade, instituindo, para fins estritamente fiscais, o denominado E-Lalur,4escrituração, em meio digital, que deverá ser entregue ao Sistema Público de Escrituração Digital-SPED, senão vejamos:

· completada a ocorrência de cada fato gerador do imposto, o contribuinte deverá elaborar o E-Lalur, forma integrada às escriturações comercial e fiscal;

· o E-Lalur discriminará os registros de ajuste do lucro líquido, com identificação das contas analíticas do plano de contas (assim considerada aquela que registra em último nível os lançamentos contábeis);

· o E-Lalur discriminará a apuração do Imposto sobre a Renda devido, inclusive as deduções, quando aplicáveis; e

· o E-Lalur discriminará as demais informações econômico-fiscais da pessoa jurídica.

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Desse modo, na esteira na Lei 11.638/ 2007, a Lei 12.973/2014, via o denominado E-Lalur, manteve a contabilidade completamente segregada das regras de tributação, sem, contudo, a exigência de uma segunda contabilidade para o Fisco, como se vê noutra passagem de sua exposição de motivos:

A manutenção da sistemática de ajustes em Livro Fiscal para os ajustes do lucro líquido foi pleiteada pela comunidade empresarial brasileira em detrimento da possível adoção da Contabilidade Fiscal segregada da Contabilidade Societária (two books of account), o que elevaria o custo Brasil para as empresas. Porém, ao adotar o Livro Fiscal como solução de controle da apuração do resultado fiscal, faz-se necessária uma identificação mais clara e precisa dos fatos passíveis de ajustes ao lucro líquido e a integração com a escrituração contábil. Esse grau de transparência garante maior segurança jurídica ao contribuinte e confere maior segurança para a aplicação de recursos pelos investidores, em função da diminuição dos riscos e surpresas com relação à diminuição do patrimônio e capacidade de geração de lucros.

Trata-se de um avanço no ambiente de tratamento, controle e demonstração das operações praticadas pelas empresas, com repercussão no resultado fiscal, reduzindo...

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