A problemática do conceitualismo e as invalidades processuais. Da palavra ao conceito e do conceito à palavra: uma análise dos defeitos dos atos processuais a partir da hermenêutica filosófica

AutorAdalberto Narciso Hommerding
Páginas137-160

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Introdução

Aprendemos, nos bancos acadêmicos1, um processo “ideal”, “modelar”, sem problemas, sem incidentes2. Aprendemos um processo em que a petição inicial sempre é apta; em que o oficial de justiça sempre encontra o réu para ser citado; em que o Ministério Público sempre é intimado para intervir; em que a sentença sempre aprecia corretamente o pedido; enfim, aprendemos um processo que é hígido, perfeito, produzindo todos os seus efeitos regularmente.

Na realidade, no entanto, a “prática”3 vem nos mostrar que, ao mínimo descuido, o processo pode vir padecer de defeitos que, por vezes, afetam ePage 138 comprometem a prestação da tutela jurisdicional. Esses defeitos do processo e dos atos processuais é que constituem o objeto do estudo das “nulidades” ou “invalidades processuais”.

Procuraremos utilizar neste ensaio o termo “invalidades processuais”, preferível que é à expressão “nulidades processuais”, pois abrange as nulidades (absolutas e relativas) e as anulabilidades. Além disso, como explica Antônio Janyr Dall’Agnol Júnior, “invalidade” é rigorosamente o antônimo de “validade”4. Daí o porquê de se afigurar melhor a utilização da expressão “invalidades”.

O problema do direito e das invalidades processuais: a linguagem e os conceitos

O problema do Direito – e, notadamente, das invalidades processuais - é o problema da linguagem e dos conceitos. Linguagem e Direito, já ensinava F. K. von Savigny, desenvolveram-se conjuntamente, sendo a linguagem, na concepção savignyana, a forma pela qual cada povo expressa sua visão da realidade5. Essa forma, para Savigny, longe de ser fixa, estável, acompanha a cada nação ao longo de seu devir temporal; acompanha o Direito por meio das diversas etapas pelas quais atravessa sua evolução. A realidade jurídica, portanto, constitui-se e se organiza mercê da linguagem em que se expressa, o que é privativo de cada povo, contribuindo para que se possam compreender seus elementos singularizadores e distintivos6.

Existe, como afirma Hans-Georg Gadamer, uma definição clássica da essência do homem, proposta por Aristóteles, segundo a qual ele é o ser vivo dotado de logos7. Na tradição do Ocidente, diz Gadamer, “esta definição tornou-sePage 139 canônica na forma de que o ser humano seria o animal rationale, o ser vivo racional, isto é, aquele que se distinguiria dos demais animais por sua capacidade de pensar. Traduziu-se, pois, a palavra logos no sentido de razão, quer dizer, pensamento. Na verdade, esta palavra significa também e sobretudo linguagem”8.

Segundo Gadamer, porém, “pertence à essência da linguagem uma inconsciência verdadeiramente abissal da mesma. Neste ponto, a cunhagem do conceito língua não é por acaso tardio. A palavra logos significa não apenas o resultado do movimento reflexionante, no qual o sujeito pensante arranca-se à efetuação inconsciente do falar, ganhando distância em relação a si mesmo. Mas o enigma propriamente dito da linguagem é o de que nós, na verdade, nunca conseguimos isto de todo. Pelo contrário, todo pensar sobre a linguagem vê-se já sempre de novo apanhado pela linguagem. Só podemos pensar dentro de uma língua. E é justamente este habitar de nosso pensamento em uma língua o enigma profundo que a linguagem coloca ao pensamento”9.

A linguagem, assim, “não é um dos meios, através dos quais a consciência liga-se ao mundo. Ela não constitui, junto ao signo e à ferramenta – que ambos pertencem, por certo, também ao traçado essencial do homem – um terceiro instrumento. A linguagem não é, de modo algum, um instrumento, uma ferramenta. Pois pertence à essência da ferramenta que dominemos seu uso, e isso quer dizer tomá-la à mão e largá-la quando cumprida sua tarefa. Isso não é idêntico a quando tomamos na boca as palavras de uma língua e, assim usadas, as deixamos recair no estoque geral das palavras de que dispomos”10.

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Uma tal analogia – da linguagem como meio, instrumento -, diz Gadamer, “é falsa, porque não nos encontramos jamais, enquanto consciência, frente ao mundo, nem lançamos mão, como que num estado de ausência de linguagem, do instrumento do entendimento. Muito pelo contrário, em todo saber de nós mesmos e em todo saber do mundo, encontramo-nos sempre já pegos pela língua que é própria de nós. Nós crescemos, aprendemos a conhecer o mundo, aprendemos a conhecer os homens e ao fim, a nós mesmos, na medida em que aprendemos a falar. Aprender a falar não significa ser iniciado no uso de um instrumento já existente, para a designação do mundo a nós íntimo e conhecido, mas significa ganhar a intimidade e o conhecimento do próprio mundo e do como ele nos vem ao encontro”11. Portanto, como diz George Steiner, “É a linguagem que fala, não, ou pelo menos não de modo primordial, o homem”12.

Se a linguagem fala, o conceito, por sua vez, não fala. Mas este, o conceito, não deixa de ter uma fundamental importância, pois é, como ensina Gadamer, “a marca propriamente dita da filosofia. Esta é, ao menos, a forma pela qual, pela primeira vez em nossa cultura ocidental, a filosofia entrou no mundo”13.

O conceito é instrumental e, talvez por isso, somente tenha sentido quando “metido”, “enfiado num todo”, “contextualizado”. Por isso é que Gadamer, ao fazer alusão à poesia, dirá que o conceito “começa a falar”, quando “enfiado num todo encadeado de versos”, como ocorre justamente na poesia14.

O conceito, além de marca da filosofia, é uma constante no Direito, tendo íntima ligação não só com o fato de que tem de estar “enfiado” num todo, num contexto, para que possa dizer algo, para que possa começar a falar, como diria Gadamer, mas, inclusive, por ter um vínculo com a questão do “outro”, pois, ao falarmos em conceitos comuns, podemos encontrar as palavras que podem nos levar à compreensão do outro. Eis a noção de alteridade para a qual o jurista deve estar sempre atento.

Como ensina Gadamer, “Sem levar a falar os conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que alcancem o outro. O caminho vai ‘da palavra ao conceito’ – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro. Só assim ganhamos uma compreensão racional, de uns para com os outros. Só assim temos a possibilidade de recolher-nos, para deixar valer o outro”15.

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Isso porque um traço essencial do ser da linguagem parece ser, como adverte Gadamer, “a ausência de um eu”. Assim, “Quem fala uma língua que nenhum outro entende, não fala. Falar significa falar a alguém. A palavra quer ser a palavra acertada. Isto não significa apenas, porém, que a palavra apresente a mim mesmo a coisa em mente, senão que a coloca diante dos olhos, para o outro com quem eu falo. Neste sentido, o falar não pertence à esfera do eu, mas à esfera do nós”16.

O problema da linguagem liga-se, pois, ao problema dos conceitos.

No Direito - e no campo das invalidades processuais isso se torna bem visível -, temos conceitos, mas não temos univocidade. Há múltiplos significados; uma plurivocidade de significados que não encontra consenso entre os doutrinadores. Daí o primeiro alerta que fazemos sobre o “dissenso” que paira sobre o tema “invalidades processuais”.

Tomemos o exemplo do defeito de citação, referido por Dall’Agnol Júnior17. Enquanto para alguns autores, v.g., Frederico Marques18, o defeito na citação constitui nulidade absoluta, para outros, como Galeno Lacerda19, por exemplo, constitui caso de nulidade relativa. Há, ainda, quem diga que se trata de caso de inexistência do processo. Nesse sentido é o magistério de Teresa Arruda Alvim Wambier20. Também E. D. Moniz de Aragão, para quem, se a citação não se fez, o caso é de inexistência da relação processual, que não chegaria a se formar, sendo o processo contaminado pelo “vício da inexistência”21.

O dissenso, porém, está muito mais no plano das palavras do que no plano da realidade. O problema é que, às vezes, acabamos nos preocupando mais com os conceitos do que com os fatos, isto é, com os fenômenos, que são o que realmente nos deveria interessar.

Ou seja, exigimos dos conceitos jurídicos, como bem lembra e critica Ovídio Baptista da Silva, “a mesma uniformidade, a mesma homogeneidade de critérios classificatórios. Como cinco vezes dois serão sempre dez, mesmo que sejam dez pulgas ou dez elefantes, assim também (sem qualquer preocupação pelo ‘conteúdo’) diremos que, se o fenômeno jurídico ‘externamente’ se rebela contra o conceito, pior para o fenômeno. O ‘conceito’, não a coisa, é o ‘material’ com que o processualista elabora sua ciência. Se as coisas não se harmonizam com o conceito, tanto pior para as coisas! O fenômeno, enquanto realidade substancial, devePage 142 desaparecer, porque o conceito nasce não apenas com o selo terreno, mas com o selo da eternidade”22.

Tem razão Ovídio.

Deveríamos, sim, ao contrário de nos preocuparmos com o conceito, ser “fenomenólogos”, como diria Gadamer, “para o qual o objetivo são as próprias coisas e não, como o é para o neokantismo, o fato da ciência”23. Isso, porém, não acontece. Continuamos mantendo exatamente a mesma atitude racionalista, que chegou ao auge no século do Iluminismo e que, segundo Palombella, produziu uma ciência, como a da legislação, “voltada para a definição dos cânones e conteúdos de um direito certo e imutável”24.

Acabamos, pois, nos tornando conceitualistas, normativistas; numa palavra: “formalistas”. A idéia de que o conceito...

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