Considerações sobre a legalidade da ortotanásia - aspectos jurídicos

AutorCarlos Felipe Felix Ventura Lopes
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
Páginas75-111
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Capítulo 10
Considerações Sobre a Legalidade
da Ortotanásia – Aspectos
Jurdicos
Carlos Felipe Felix Ventura Lopes
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro
Especialista em Direito Penal e Processo Penal
Professor na Universidade Iguaçu - Itaperuna
10.1 a MOrte cOMO fiM da PersOnalidade HuMana
Morrer, Senhor, de súbito, não quero!/Morrer como quem parte len-
tamente/Vendo o mundo perder-se pouco a pouco/E com o mundo
as imagens da memória./Morrer sabendo próxima e implacável/A
hora de deixar o doce efêmero./Morrer, o olhar voltado para a al-
tura/Para a Face de Deus, ardente e pura./Morrer como quem vai
se despedindo/A xar as paisagens mais antigas/E os seres mais
longínquos, já partidos./Morrer levando a vida já vivida!/Morrer
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Hildeliza lacerda Tinoco BoecHaT caBral
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maduro, e não qual fruto verde/Por violência dos galhos arrancado.
(AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT)
O Código Civil preceitua que a personalidade civil da pessoa tem
início a partir do seu nascimento com vida, embora ressalte que os direi-
tos do nascituro (aquele ser humano que está ainda por nascer), desde
o momento de sua concepção, são salvaguardados pela lei (artigo 2º, do
Uma vez adquirida a personalidade civil, ainda que por meio de
vida breve como um lampejo, todo ser humano torna-se, para a ciência
jurídica, uma pessoa natural, capaz de adquirir direitos e de contrair
obrigações e deveres na ordem civil (artigo 1º, do Código Civil).
O civilista Caio Mário da Silva Pereira aduziu o seguinte:
Ocorre o nascimento quando a criança é separada do ventre materno,
não importando tenha o parto sido natural, feito com o auxílio de
recursos obstétricos ou mediante intervenção cirúrgica. O essencial
é que se desfaça a unidade biológica, de forma a constituírem mãe e
lho dois corpos, com vida orgânica própria, mesmo que não tenha
sido cortado o cordão umbilical. Para se dizer que nasceu com vida,
todavia, é necessário que haja respirado. Se respirou, viveu, ainda
que tenha perecido em seguida. Lavram-se, neste caso, dois assentos,
o de nascimento e o de óbito (LRP, art. 53, § 2º). Não importa, tam-
bém, o nascimento tenha sido a termo ou antecipado (PEREIRA apud
GONÇALVES, 2014, p. 101).
Essa personalidade jurídica da pessoa natural cessa no momento
de sua morte, real ou presumida (artigos 6º; 7º; 9º, inciso IV; 22; 37; todos
do Código Civil). A morte, portanto, pressupõe a vida. Só pode morrer
quem antes esteve vivo. Não é possível morrer sem antes ter primeiro
nascido e vivido.
A morte real se dá com o diagnóstico de paralisação da atividade
encefálica (artigo 3º, da Lei nº 9.434/97, que dispõe sobre a remoção
de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para ns de transplante e
tratamento). A morte presumida, sem decretação de ausência, conside-
ra-se ocorrida na data xada na sentença judicial (artigo 7º, parágrafo
único, do Código Civil). Já a morte presumida, com decretação de au-
sência, tem seu marco temporal coincidente com o momento em que for
declarada a abertura de sucessão denitiva (artigos 6º, 22 e 37, todos do
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A morte pode ser juridicamente comprovada por variados meios.
A depender da situação vivenciada, o falecimento de alguém pode ser
demonstrado pela mera lavratura do atestado de óbito (artigo 77, da Lei
nº 6.015/73), por meio de ação declaratória de morte presumida sem
decretação de ausência (artigo 7º, do Código Civil), pelo ajuizamento de
ação de decretação de ausência e abertura de sucessão denitiva (arti-
gos 6º e 37, ambos do Código Civil) ou, ainda, por intermédio de ação
de justicação de óbito (artigo 88, da Lei 6.015/73).
É sobretudo no curso entre esses dois importantes marcos civis, o
nascimento com vida e a morte, que se desenvolvem as relações jurídi-
cas dos indivíduos da espécie humana, aqui entendidas como todas as
relações estabelecidas durante o convívio social e reguladas pelo Direi-
to. Em outras palavras, é principalmente no tempo de sua existência
(artigos e , ambos do Código Civil) que a pessoa natural se faz su-
jeito de direitos, deveres e obrigações na ordem jurídica. Washington de
Barros Monteiro ressalta, no entanto, não ser
[...] completo o aniquilamento do de cujus pela morte. Sua vontade
sobrevive através do testamento. Ao cadáver é devido respeito, ha-
vendo no Código Penal dispositivos que reprimem crimes contra os
mortos (arts. 209 a 2012). Militares e servidores públicos podem ser
promovidos post mortem e aquinhoados com medalhas e condeco-
rações. A falência pode ser decretada, embora morto o comerciante
(Dec.-Lei n. 7.661, de 21-6-1945, art. 3º, n. I e art. 9º, n. I). Por m, exis-
te a possibilidade de reabilitar-se a memória do morto (MONTEIRO
apud GONÇALVES, 2014, p. 143).
Desde o momento em que nasce até a hora de sua morte, no contato
com seus pares, na vida de relação, a pessoa natural se vê no ensejo fre-
quente e inevitável de vivenciar situações fático-jurídicas capazes de lhe
vulnerar direitos e de lhe acarretar o estabelecimento de deveres e obri-
gações. Não raro, no turbilhão emocional do cotidiano e em meio à pressa
dos tempos em curso, o ser humano é deparado, quase sempre surpreso,
com o inexorável avigoramento da linha tênue que separa a vida da mor-
te, morte de si próprio, de seus entes familiares ou de terceiros.
É nesse cenário que surgem, entre tantas outras questões jurídicas
instigantes, os debates a respeito da eutanásia, da distanásia e da orto-
tanásia – cujos conceitos já foram apresentados nesta obra, em pontos
anteriores ao presente capítulo –, comportamentos ontologicamente li-
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