Aspectos constitucionais penais da Lei de "Lavagem" de Dinheiro

AutorGonçalo Farias de Oliveira Júnior/Alexandre Sturion de Paula
CargoDocente de Direito Processual Penal da Universidade Norte do Paraná. Analista Processual do Ministério Público Frdcrul ç Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Mestraiido em Direito Penal na Associação Educacional Toledo cie Presidente Prudente (SP). Endereço para correspondência: Av. Paris, 6
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Paulada em princípios de incremento tecnológico e organização sistemática, a sociedade pós-industrial tem experimentado, nas últimas décadas, profundas e vertiginosas transformações científicas, sociais, políticas e económicas. No campo da economia, por exemplo, observa-se que o modelo predatório de capitalismo globalizado, articulado pelas nações ricas, tem provocado um desmedido agravamento dos conflitos sociais nos países pobres e contribuído para a degeneração cada vez crescente do seu tecido social. Já no campo da criminalidade surgiram, em meio a esse delicado quadro, modalidades de delinquência antes desconhecidas, mormente nos setores da informática, da biogenética, dos negócios públicos etc.

Enfatiza Ticdemann (1985, p. 121) que os avanços tecnológicos alcançados nos tempos recentes provocaram o aparecimento de uma criminalidade específica, de âmbito socioecotwmico. Cita, como exemplo, afora outros, as fraudes por meio de empresas, os crimes contra o meio ambiente cometidos em decorrência de atividades industriais, os delitos fiscais envolvendo pessoas jurídicas e a corrupção política de fundo económico.

Entre essas modalidades delitivas específicas, temos, ainda, a chamada "lavagem" de dinheiro -ou money laundering, geltlwãsche, blachimentd'argent, reciclado dei denaro, blanqueo de dinero -, problema .socioeconômico de amplitude transnacional que tem desafiado a enérgica ação dos governos lanto dos países periféricos quanto dos centrais.

De acentuadadanosidade social, essas espécimens delitivas apresentam, ainda, outras peculiaridades marcantes, como a utilização de sofisticadas técnicas e procedimentos, recursos materiais de alta

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tecnologia e mao-de-obra qualificada e especializada no seu modas faciendi, o que tem exigido, como contra-resposta, a formulação de políticas estatais eficientes, associadas a um sistema normativo penal destinado ao seu controle e repressão.

A expressão "lavagem" de dinheiro remonta aos idos de 1920, nos Estados Unidos da América do Norte, época em que os mafíosos criaram uma rede de lavanderias de roupas para dar aparência de procedência lícita ao dinheiro auferido com suas atividadcs delituosas, especialmente o contrabando e a sonegação fiscal.

Atento à i mperiosa e inadiável necessidade de dar tratamento normativo-penal à questão, o legislador pátrio editou, no início de 1998,aLein° 9613, como forma de conter e reprimir esse nefasto fenómeno criminológico, cujos comandos acabam por transbordar para outras áreas que não à ligada exclusivamente -aojus Hberíatis, como a propriedade, a intimidade etc.

De seu lado, com o texto legislativo sancionado, nosso Poder Legiferante reverberou a hodierna tendência do Dirc ito Penal Económico Internacional de tutelar a ordem econômico-financeira, muito embora, e isso é importante sobressaltar, a "lavagem" de capitais não afete com exclusi vidade a economia.

Com efeito, face à naturezapluriofensiva do "branqueamento" de dinheiro, que apresenta em si uma amplitude metajuríãica, no sentido de que se irradia para diversos setores da sociedade e do Estado e que decorre do carátermultifacetado do seu processo de realização e dd. feição acessória do tipo penal, a legislação anti-rcciclagem é dotada de múltipla objeúvidade jurídica. Assim, podemos indicar como valores outros por ela tutelados a administração da justiça, o sistema financeiro, a. saúde pública, a segurança nacional, a Administração Pública, o património etc.

Tocante à ordem socioeconô mica como bem jurídico primordialmente tutelado pela Lei, Gomes (1998, p. 321) lembra que o blanqueo de dinero é tido por uma parte significativa da doutrina especializada como uma categoria delitiva que atenta contraa segurança da ordem económico-financeiiu Para o renomado doutrinador paulista, a criação de figuras típicas especiais voltadas ao combate da "lavagem" de dinheiro visaessencialmente à proteção da normalidade do tráfego jurídico no mundo da economia, podendo-se arrematar que o bem jurídico tutelado pela Lei é a regularidade do sistema económico-financeiro do país.

Em termos internacionais, a legislação em foco se motivou, inicialmente, na Convenção de Viena de 1988, e em diversas conferências e tratados, como a Conferência Ministerial sobre Lavagem de Dinheiro e Instrumento do Crime de Buenos Aires, A incriminação deveu-se também ao Acordo Internacional da Cúpula das Américas, onde os países signatários, dentre os quais a República Federativa do Brasil, se comprometeram a ratificar a Convenção das Nações Unidas sobre o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substanciai; Psicotrópicas de 1988, que se propôs sancionar penalmente a "lavagem" dos proventos advindos de todo e qualquer delito de periculosidade acentuada, tornando-se prioridade a lipificação dos delitos del lavabo e daqueles conexos com este.

Movimentando cifras inacreditáveis da ordem de 1,5 trilhão de dólares anualmente, segundo estimativa do Financial Action Task Force on Money Líiundehng -FATF (2001), baseado em estatísticas económicas do Fundo Monetário Internacional, os autores dessas ações criminosas, aproveitando-se inclusive das lacunas iegislativas, que, aliás perduraram durante muito tempo, provocaram sérios danos e prejuízos à ordem socioeconômica de muitos países.

Cumpre sublinhar que a Lei de "Lavagem" de Dinheiro não é um instrumento de controle isolado no campo econômico-financeiro, haja vista a existência de outros, inclusive de natureza administrativa. Assim, antes da Lei n° 9613/98, o nosso legislador havia promulgado a Lei n° 9034/95, com a finalidade de prevenir c reprimir as ações praticadas por organizações criminosas, a qual, segundo Fernandes (1998, p. xii), não obteve o êxito esperado, devido às suas viciosidades.

O Brasil, como se vê, tencionando avivar o princípio da justiça penal universal e ratificar o desejo geral de luta contra essa criminalidade cosmopolita, passou, além de colaborar legislativamente, a firmar tratados, convenções e protocolos para coibir o mal, hoje, um dos mais perseguidos pelos ordenamentos jurídico-penais de diversos Estados.

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De outro giro, levando-se em conta a importância da criminalidade organizada no cenário do Direito Penal contemporâneo, observa-se que a doutrina pátria pouco tem se debruçado na investigação "Lavagem" de Dinheiro.

Sem almejar fomentara discussão acerca da supremacia da Constituição - tarefa essa da qual já se incumbiram percuncientemente Kelsen (1998, p. 216-217), para quem a Gnmdtwrm está no ápice do ordenamento jurídico, e, Bobbio (1997, p. 48-65) que considera que o poder constituinte originário c anterior à Norma Fundamental, posto que aquele resulta da vontade soberana do povo. cumpre hachurar que o Direito Penal deve estar ajustado/omiti/ e materialmente à Constituição.

Discorrendo sobre a teoria da norma jurídica, Bobbio (1993, p. 39-40) anota com maestria que o positivismo não representa mais uma doutrina solitária nos Estados, de forma que o Direito deve atender também às necessidades populares, isto é, as normas inseridas dentro do spirito delpopolo.

Direito político por excelência-porque definidor dos princípios estruturantes do Estado, da sua forma e estrutura, das competências e atribuições dos seus órgãos, das formas e processos fundamentais à formação da vontade política dos órgãos poíítico-constitucionais - o Direito Constitucional não só se apresenta como fundamento do Direito Penal, mas do sistema penal também.

Zaffaroni & Pierangeli (1999, p. 134-135) ensinam que o Direito Penal guarda estreita relação com o Direito Constitucional, pois a Constituição Federal é o estatuto político da Nação, primeira manifestação legal da política penal, a qual orienta as decisões tomadas peio poder político ou propicia os argumentos que possibilitam criticar tais decisões...

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