O controle de constitucionalidade do direito estadual e municipal na constituição federal de 1988

AutorProf. Gilmar Mendes
CargoAdvogado Geral da União. Professor Adjunto da Universidade de Brasília - UnB. Doutor em Direito pela Universidade de Münster.
Páginas2-43

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1. Considerações preliminares

O texto constitucional de 1988 contemplou expressamente a questão relativa ao controle abstrato de normas da lei estadual e municipal em face da Constituição, consagrando no art. 125, § 2º que compete "ao Estado a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da constituição estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão".

Todas as Constituições estaduais, sem exceção, disciplinaram o instituto, com maior ou menor legitimação.

Algumas unidades federadas não se limitaram, porém, a consagrar o controle abstrato de normas dos atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição estadual, instituindo, igualmente, a ação direta por omissão.

A ausência de menção expressa ao Distrito Federal, no art. 125, § 2º , tem dado ensejo a certa insegurança jurídica quanto ao controle de constitucionalidade do direito distrital em face da Lei Orgânica.

A instituição da ação declaratória de constitucionalidade no plano federal (Emenda nº 3/1993) introduz a indagação sobre a possibilidade de adoção desse novo instrumento no âmbito estadual.

Há outras questões não menos importantes.

Indaga-se, v.g., sobre os efeitos das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça com base em normas constitucionais estaduais cuja reprodução é expressamente exigida ou determinada pelo constituinte federal. Pergunta-se sobre o cabimento do recurso extraordinário contra decisão proferida pelo Tribunal estadual em sede de ação direta.

2. O controle de constitucionalidade da lei estadual e municipal no âmbito do estado-membro e a jurisdição constitucional federal
2. 1 Necessidade de autorização constitucional

A controvérsia sobre a admissibilidade do controle de constitucionalidade da lei municipal suscita, como ressaltado, inevitável indagação quanto à possibilidade de criação, na esfera estadual, de uma autêntica jurisdição constitucional (Landesverfassungsgerichtsbarkeit).

Não é preciso dizer que, no estado federativo, a criação de órgãos destinados a exercer a jurisdição constitucional não se há de fundar, exclusivamente, na eventual existência de paradigma no âmbito do Poder Central. Cuidando de uma tarefa peculiar, faz-se mister que o constituinte reconheça aos entes federados o poder para instituir órgãos de defesa daPage 3 Constituição. É o que ensina, com precisão, Ernst Friesenhahn, na seguinte passagem:

"Constitui tarefa da jurisdição constitucional garantir, nos diferentes processos, uma defesa institucional autônoma da Constituição. A jurisdição constitucional distingue-se de outros tipos de jurisdição mediante uma peculiar relação com o texto constitucional. E, por isso, ocupa lugar de destaque na organização estatal concebida pela Constituição. Os Tribunais constitucionais são considerados entre os chamados 'órgãos constitucionais'(Verfassungsorgane).

No estado federal, somente pode existir jurisdição constitucional no âmbito do Estado-membro se a Constituição Federal assegura às unidades federadas não só a liberdade para criar, por sua própria deliberação, constituições autônomas, mas também o poder para regular, especificamente, a defesa judicial de sua Constituição".

A lição do emérito jurista explicita, com clareza, a problemática da jurisdição constitucional, no âmbito da unidade federada. A invocação do paradigma federal não se afigura suficiente para legitimar a criação de Cortes Constitucionais, nos limites do Estado-Membro. Não basta, igualmente, a outorga do poder constituinte decorrente. Faz-se mister que se reconheça o poder de disciplinar a defesa judicial de sua Lei Maior.

A Constituição alemã contempla, expressamente, a possibilidade de se instituir a jurisdição constitucional no plano estadual, como se depreende da leitura do preceituado nos arts. 93, par. 1º , nº 4 e 4b, 99, e 100, § 1º . E o Bundesverfassungsgericht, em uma de suas primeiras decisões, afirmou a compatibilidade da jurisdição constitucional estadual com os princípios insculpidos na Lei Fundamental:

"Em um Estado marcadamente federativo, como a República Federal da Alemanha, os planos constitucionais da União e dos Estados estão, fundamentalmente, situados um ao lado do outro. A Lei Fundamental contém poucas disposições que devem ser incorporadas pelas Cartas estaduais. No mais, podem os Estados emprestar a conformação desejada ao seu Direito Constitucional e, com isso, à sua jurisdição constitucional".

Efetivamente, todos os Länder da antiga República Federal da Alemanha, com exceção de Schleswig-Holstein, instituíram a jurisdição constitucional de forma diferenciada.

2. 2 Coexistência de jurisdições constitucionais estaduais e federal

A amplitude da jurisdição constitucional no Estado federal suscita inúmeras questões. A inexistência de regras de colisão - como é o caso daPage 4 Alemanha e do Brasil - enseja insegurança, em determinadas situações, quanto à competência da jurisdição estadual ou federal.

Como os atos do poder estadual estão submetidos às jurisdições constitucionais estaduais e federal, torna-se evidente, em certos casos, a concorrência de competências, afigurando-se possível submeter uma questão tanto à Corte estadual quanto ao Bundesverfassungsgericht, nos casos de dupla ofensa.

Todavia, como enunciado, os parâmetros para o exercício do controle de constitucionalidade pelo Bundesverfassungsgericht hão de ser, fundamentalmente, a Constituição e as leis federais. Da mesma forma, parâmetro para o controle de constitucionalidade exercido por um Landesverfassungsgericht é a Constituição estadual, e não a Lei Fundamental ou as leis federais.

Situação semelhante verifica-se ente nós. O parâmetro de controle do juízo abstrato perante o Supremo Tribunal Federal haverá de ser apenas a Constituição Federal. Já o parâmetro de controle abstrato de normas perante o Tribunal de Justiça estadual será apenas e tão-somente a Constituição estadual.

Tais afirmações não logram afastar toda a problemática que envolve o tema. Observe-se que a Lei Fundamental outorga uma ampla competência à União (arts. 73, 74, 74a, 75, 104a, 105 e 107). Algumas disposições contidas na Lei Fundamental, como as que disciplinam os direitos fundamentais, integram, obrigatoriamente, o direito estadual.

Não obstante a existência de esferas normativas diferenciadas, afigurase legítima a conclusão de Pestalozza, segundo a qual a existência das jurisdições estaduais e federal outorga ao lesado uma dupla proteção, seja quando o ato se afigure incompatível com disposições federais e estaduais materialmente diversas, seja quando malfira preceitos concordantes da Constituição Federal ou da Carta estadual.

Ademais, a ampla autonomia de que gozam os Estados-Membros em alguns modelos federativos milita em favor da concorrência de jurisdições constitucionais.

Portanto, uma mesma lei estadual pode ser compatível com a Lei Maior e incompatível com a Carta estadual. Daí abster-se o Bundesverfassungsgericht de se pronunciar sobre a validade da lei estadual, limitando-se a declarar a sua compatibilidade com a Lei Fundamental ou com o direito federal. E, às objeções quanto à inexistência de objeto no controle de constitucionalidade em face da Lei Fundamental, no caso de inconstitucionalidade diante da Carta estadual, responde Friesenhahn, com proficiência:Page 5

"Tal restrição não leva em conta que, no Direito Constitucional, há que se distinguir o juízo sobre a validade da competência para apreciar essa validade ou declarar a invalidade" (Dieser Einwand übersieht, dass im Verfassungsrecht zu unterscheiden ist, ob materiell eine Norm ungültig ist und wer befugt ist, die Gültigkeit zu prüfen und die Ungültigkeit geltend zu machen).

Não se deve olvidar, outrossim, que pronunciamento genérico de Corte estadual quanto à inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal, em face do Texto Magno, pareceria totalmente incompatível com o exercício do controle concentrado de constitucionalidade pela Corte Constitucional Federal.

Esta questão foi suscitada, entre nós, pelo eminente Ministro Moreira Alves, no RE 92.169-SP (Rel. Min. Cunha Peixoto), ressaltando que:

"(...) se fosse possível aos Tribunais de Justiça dos Estados o julgamento de representações dessa natureza, com relação a leis municipais em conflito com a Constituição Federal, poderia ocorrer a seguinte situação esdrúxula. É da índole dessa representação - e isso hoje é matéria pacífica nesta Corte - que ela, transitando em julgado, tem eficácia erga omnes, independentemente da participação do Senado Federal, o que só se exige para a declaração incidenter tantum. O...

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