Construção cultural da hegemonia ultraliberal - montagem de um suposto pensamento único

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas71-91

Page 71

A construção cultural da hegemonia da matriz neoliberal de pensar e gerir a sociedade e a economia capitalistas realiza-se, como visto, a partir de fins dos anos 1970, no Ocidente, em torno de dois grandes processos.

O mais importante desses processos reside na formatação e generalização de um pensamento de natureza ultraliberal, que busca status na cultura dominante de pretenso pensamento econômico único, supostamente sem competidores consistentes no que tange à expli cação e ao gerenciamento da economia e sociedade contemporâneas.

Esse processo é que será examinado no presente item III.

O segundo de tais processos que atuam na construção cultural da presente hegemonia liberalista reside na fragmentação de parte relevante do pensamento crítico ao capitalismo ou, pelo menos, na fragmentação do pensamento crítico ao capitalismo descontrolado, capitalismo sem peias, que se estrutura à base da filosofia do laissez-faire.

Esse segundo processo será estudado no item IV, seguinte, deste capítulo.

1. A matriz Teórica Liberal no Sistema Capitalista

O processo de construção, no Ocidente, da atual hegemonia do liberalismo econômico extremado deflagrou-se, com sucesso, a partir de meados dos anos 1970, no contexto da forte crise econômica então surgida nos países capitalistas e da incapacidade conjuntural de as políticas públicas então dominantes, enqua-

Page 72

dráveis como keynesianas, enfrentarem, com resultados rápidos, a estagnação e a inflação despontadas naquela época (estagflação).

Entretanto, deve ser ressaltado que a matriz econômica liberal tem história muito mais extensa e longínqua no capitalismo, embora nem sempre fosse hegemônica, ao menos quanto a suas vertentes mais ortodoxas e extremadas.

De fato, o pensamento liberal de análise da sociedade e de gestão da economia e das próprias políticas públicas constituiu-se na primeira corrente de pensamento econômico a alcançar efetiva hegemonia na história do capitalismo, desde a afirmação desse sis tema socioeconômico a partir do século xVIII.

Essa hegemonia liberista permaneceu incólume durante todo o século xIx, não obstante, em sua segunda metade, já despontassem críticas consistentes e cada vez mais generalizadas ao capitalismo desenfreado, sem peias, instigado por essa matriz de interpretação e gestão da economia e sociedade. O surgimento do Direito do Tra balho, aliás, nesse período final do século xIx, já traduzia um revés imposto à plena dominância do liberalismo radical.

O império cultural liberalista somente iria sofrer, porém, sua mais severa e abrangente derrota a contar do desastre econômico -social verificado em fins da década de 1920 e desenrolar dos anos 1930: a profunda recessão econômica, com elevadíssimas taxas de desemprego (em média, acima de 20% nos EUA e em países euro peus), circunstâncias provocadas pela gestão descontrolada da economia que o liberalismo tanto elogiava e impunha. A profundi dade e a generalização desse desastre, tudo conduziu ao fim da hegemonia dessa matriz de explicação e gerenciamento da vida socioeconômica.

Nesse quadro de ineficiência, insensibilidade e desastre ultraliberais, firmou-se, pelos quase cinquenta anos subsequentes, a he gemonia de outra matriz de pensamento, sinteticamente apelidada de intervencionismo keynesiano (também conhecida, vulgarmente, como reformismo capitalista).

A propósito, durante o longo período de hegemonia keynesiana, as vozes liberais radicais mantiveram-se culturalmente isoladas, sem capacidade de influência significativa na sociedade e nas políticas públicas, embora confortavelmente protegidas pela interlocução es treita com o segmento mais abastado e conservador do capitalismo - o capital financeiro-especulativo. Mesmo assim, vez por outra, conseguiam sensibilizar as políticas públicas, com seu ternário fiscal, financeiro e desregulamentador ortodoxo.

Apenas a contar de finais da década de 1970 e, principalmente, durante os anos 1980 e período seguinte, é que iria se recompor a hegemonia do liberalismo econômico radical no capitalismo do Ocidente.

Por tudo isso, é preciso que fique claro que, ao se falar na montagem durante as últimas décadas de um suposto pensamento econômico único, expressão

Page 73

de uma forte hegemonia ultraliberal, está-se reportando a um processo histórico-conjuntural que não se compreende sem a referência, ainda que breve, às fases distintas que o precederam.

Liberalismo Econômico Originário

A matriz econômica neoliberal recente tem antecedentes históricos longínquos no capitalismo, remontando às primeiras fases desse sistema econômico-social.

Efetivamente, como já apontado, o pensamento liberal de análise da sociedade e de gestão da economia e das políticas públicas constituiu-se na primeira corrente de pensamento econômico a alcançar efetiva hegemonia na história do capitalismo, desde a consolidação desse sistema socioeconômico a partir do século xVIII.

Alguns dos principais clássicos da teoria econômica estruturada nos primórdios do capitalismo podem ser arrolados, em regra, como construtores da matriz econômica liberal, de grande fôlego intelec tual e político nos séculos seguintes.

Nesse rol, destacam-se Adam Smith (1723-1790), com sua mais notável obra, Uma investigação sobre a natureza e causa da rique za das nações, de 1776; Thomas Robert Malthus (1766-1834) e seu livro mais conhecido, cujo título (sintetizado) é Ensaio sobre o princípio da população (1798); David Ricardo (1772-1823), cuja obra mais célebre intitula-se Princípios da economia política e tributação (1817); Jeremy Bentham (1748-1832), cujo trabalho mais influente sobre a teoria econômica do século xIx, segundo E. K. Hunt, foi Uma introdução aos princípios da moral e direito (1780)2; Jean-Baptiste Say (1767-1832), com seu livro mais conhecido, Um tratado de economia política (1821); Nassau Senior (1790-1864), com obras como Três lições sobre o preço dos salários (1830) e Um esboço da ciência da economia política (1836); Frederic Bastiat (1801-1850), com seu mais influente livro, Harmonias econômicas (1850); John Stuart Mill(1806-1873), cuja obra mais relevante intitula-se Princípios de economia política (1848)3.

O conjunto desses autores confere suporte a alguns veios teóricos relevantes do pensamento liberista em qualquer de suas épocas, mesmo no século xx e nos próprios dias atuais. Citem-se, ilustrativamente, a perspectiva individualista de análise da economia e da sociedade; a defesa da propriedade privada, do lucro e do capitalismo como valores naturais e prevalentes de organização socio econômica; a censura ao intervencionismo e ao dirigismo estatais, por serem considerados tendentes a produzir restrições ao livre interesse das forças do capital; a concepção

Page 74

de equidade e justiça com base no estrito esforço individual, em harmonia com a ideia da ima nente racionalidade do funcionamento do sistema capitalista.

Entretanto, já na primeira metade do século xIx, essa teorização econômica capitalista clássica evidenciaria importante cisão, dando origem a uma versão mais extremada de pensamento econômico, com rigorosa e insaciável lealdade aos estritos interesses do capi tal: trata-se da versão ultraliberal de teoria econômica, que desaguaria, já no século xx, na escola austríaca, de Frederick Hayek, e na escola de Chicago, de Milton Friedman, "proponentes de um con servadorismo extremo e defensores rígidos e intransigentes do capitalismo laissez-faire".4

A essa vertente oriunda da teorização econômica liberal clássica do capitalismo tem-se conferido o epíteto de teoria neoclássica monetarista.

A partir da ideia de utilidade, sugerida por Jeremy Bentham em sua obra de 1780, Jean-Baptiste Say iria sustentar, em seu livro de 1821 - e ao contrário de Adam Smith e David Ricardo -, não ser o trabalho a fonte do valor na economia, porém a utilidade atribuída aos bens na vida econômico-social. Essa teorização, que reduzia a relevância do trabalho na vida real e na própria teoria econômica, seria, logo a seguir, aprofundada por Nassau Senior, em sua obra de 1936, que iria contribuir, conforme exposto por E. K. Hunt, para assegurar certo padrão de objetividade e neutralidade científica ao veio teórico utilitarista5. Mais à frente, ainda em meados do século xIx, Frederic Bastiat alcançaria uma mais abrangente formulação da teoria econômica utilitarista, pela qual seriam reduzidas a simples atos de troca "todas as interações econômicas, políticas e sociais dos seres humanos".6

Essa matriz liberal radical - que desprestigia claramente o trabalho - é que serviria de base inspiradora do ultraliberalismo que iria se disseminar hegemonicamente nas últimas décadas do século xx, liderado por autores europeus e norte-americanos de grande notoriedade, alguns já atuantes na primeira metade do século xx, em pleno império hegemônico do keynesianismo. Nesse rol, citemse, por ilustração, Ludwig von Mises, Walter Lippmann, Friedrich von Hayek, Milton Friedman, James Buchanan7.

2. A matriz Econômica Keynesiana: meio século de hegemonia

Retomando-se o pensamento liberista mais extremado de fins do século xVIII e início do século xIx (Jean-Baptiste Say, Nassau Senior e Frederic Bastiat,

Page 75

principalmente), nota-se que ele se afasta da vertente também liberal capitaneada por Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill, que atribuíam, ainda que em graus diferenciados, ao trabalho o papel de instrumento de criação de valor na economia.

Essa relevante noção do trabalho...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT