Construção cultural da hegemonia ultraliberal - fragmentação de parcelas do pensamento crítico

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas91-99

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A construção cultural da hegemonia da matriz neoliberal de pensar e gerir a sociedade e a economia capitalistas realiza-se, como visto, a partir de fins dos anos 1970, no Ocidente, em torno de dois grandes processos.

O mais importante desses processos reside, como visto, na formatação e generalização de um pensamento de natureza ultraliberal, com pretensões de se tornar único pensamento econômico válido, supostamente sem competidores consistentes no que tange à explica ção e ao gerenciamento da economia e sociedade contemporâneas.

O segundo dos processos que atuam na construção cultural da presente hegemonia liberalista reside na fragmentação de parte rele vante do pensamento crítico ao capitalismo ou, pelo menos, na fragmentação do pensamento crítico

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ao capitalismo descontrolado, capitalismo sem peias, que se estrutura à base da filosofia do laissez -faire.A propósito, a matriz liberalista somente pôde espraiar-se e consolidar-se de maneira tão ousada nos últimos tempos precisamente porque a reflexão crítica sobre o sistema capitalista entrou em refluxo, mostrando-se acuada, dispersa ou, em certos instantes e segmentos, até mesmo cooptada pelo ideário hegemônico das últimas décadas.

Este segundo processo é que será estudado no presente item IV.

1. o Primado do Trabalho e do Emprego: cerco e rendições

O processo de construção, no Ocidente, da atual hegemonia do pensamento econômico liberal extremado deflagrou-se, com sucesso, a partir de fins dos anos 1970, no contexto da forte crise econômica então surgida nos países capitalistas e da incapacidade conjuntural de as políticas públicas então dominantes, de natureza keynesiana, enfrentarem, com resultados rápidos, a estagnação e a inflação despontadas naquela época (estagflação).

Desde esse período, com a reascensão da corrente liberal de análise e conformação da economia, da sociedade e do Estado, se gundo as versões capitaneadas por Friedrich Hayek, Milton Friedman e demais divulgadores, o primado do trabalho e do emprego no sis tema capitalista passou a ser severamente fustigado.

A nova corrente antissocial de pensamento, com impressionante voracidade de construção hegemônica - urdida e acumulada ao longo dos quase cinquenta anos precedentes de isolamento na Europa e EUA -, passou a agredir, de maneira frontal, a matriz cultural afirmativa do valor-trabalho/emprego, por ser esse valor o grande instrumento teórico de construção e reprodução da democracia social no Ocidente. Em suma, a permanência da noção de centralida de do trabalho e do emprego no sistema econômico e na sociedade capitalistas, tal como predominante na cultura das várias décadas anteriores, desde os anos 1930, inviabilizaria, de modo absoluto, a aplicação do receituário de império do mercado econômico, estru turado pelo pensamento neoliberal.

Enfatize-se este aspecto crucial do problema: se reduzida aos seus elementos principais, fundantes, a presente matriz ultralibera lista revela, no seu núcleo, indisfarçável desprezo e desrespeito quanto ao trabalho.

Desse núcleo, decorre seu segundo principal elemento fundante: o super-privilégio que confere ao capital financeiro-especulativo, por este representar, na essência, a moeda, o dinheiro, a riqueza em seu estado puro. Em coerência com isso, o império do capital financeiro-especulativo na economia e na sociedade tem traduzido, de ma neira recorrente, na história do capitalismo, o máximo de negligência pelas considerações relativas ao trabalho, sendo-lhe inerente certa impávida insensibilidade quanto às taxas elevadas de desemprego que a hegemonia financeiro-especulativa naturalmente provoca.

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Em suma, desponta como manifesta a antítese entre as duas vertentes teóricas de compreensão e gestão da vida socioeconômi ca que se digladiaram na conjuntura da década de 1970.

Ora, nesse quadro de construção de hegemonia cultural e po lítica no capitalismo das últimas décadas, passava a ser um dos desafios mais relevantes e urgentes para as vertentes de renovação do velho liberalismo exatamente a desconstrução da matriz teórica afirmativa da centralidade do trabalho e do emprego na sociedade democrática contemporânea e no sistema econômico--social capitalista.

Não é por outra razão que o velho liberalismo, reconstruído na segunda metade do século xx, evitava buscar inspiração nos mais notáveis clássicos liberais de fins do século xVIII e início do século xIx, como Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823), uma vez que estes ainda firmaram suas reflexões em torno do valor -trabalho.

O liberalismo readequado e extremado dessas últimas décadas iria preferir, ao invés, colher sua seiva em autores como Jean-Baptiste Say (1767-1832),

Nassau Senior (1790-1864) e Frederic Bastiat (1801-1850), que, desde o século xIx, já elaboravam sua teorização desconsiderando a centralidade do trabalho no capitalismo49.

O que parece que não tem sido percebido neste contexto é que a centralidade (ou não) do trabalho e do...

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