A construção da memória social das produções artísticas na saúde mental pós reforma psiquiátrica no Brasil

AutorRenata Caruso Mecca - Diana de Souza Pinto
CargoDoutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - Doutora em Saúde Mental Professora-Associada no Programa de Pós Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Páginas75-92
http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2017v14n2p75
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL DAS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS NA
SAÚDE MENTAL PÓS REFORMA PSIQUIÁTRICA NO BRASIL
Renata Caruso Mecca
1
Diana de Souza Pinto2
Resumo:
Desde a Reforma Psiquiátrica no Brasil, surgiram muitos grupos artístico-culturais na
saúde mental que contribuem para a construção da participação sociocultural da
população atendida. A memória social dessas produções se constrói em meio a
disputas de sentido, coloca em destaque o jogo de forças entre diferenças potenciais
que lutam para se afirmar e prevê dar lugar ao novo. Por meio de uma reflexão
crítica sobre textos que descrevem experiências emblemáticas na interface da arte e
da saúde mental, evocamos elementos que sugerem duas formas de contribuição
desses relatos para a construção da memória dessas produções: como trabalho e
como invenção. A memória como trabalho é utilizada como instrumento de
transformação social e se faz por meio da militância de atores que constroem
visibilidade e apostam numa transformação das concepções sobre loucura. A
memória como invenção é propulsionada pela qualidade intensiva dos encontros
entre os atores e pela afetação que as produções promovem. Conjuga fluxos de
desejo e experiências estéticas que deslocam identidades e engendram um campo
de invenção permanente de formas de recepção desta produção. Conclui-se que
esse processo evidencia um tensionamento entre uma dimensão molecular da
memória, que se abre para a transversalidade das concepções de arte e loucura,
transformando o mapa do perceptível, e uma dimensão molar, que enfatiza as
tendências de categorização em segmento específico, ou como produção
diretamente vinculada a um efeito social esperado pelas iniciativas da Reforma
Psiquiátrica contra a estigmatização da loucura.
Palavras-chave: Arte. Saúde Mental. Memória. Cultura.
1 INTRODUÇÃO
Desde que as práticas de atenção psicossocial se afirmaram como paradigma
para a política pública em saúde mental no país, surgiram muitos grupos artístico-
culturais na saúde mental que configuraram um novo momento da relação loucura e
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social na Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. Professora do curso de T erapia Ocupacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail:
meccadasartes@yahoo.com.br
2 Doutora em Saúde Mental Professora-Associada no Programa de Pós Graduação em Memória
Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: dianap@globo.com
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R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.14, n.2, p.75-92 Mai.-Ago. 2017
sociedade e que contribuíram para a construção da participação sociocultural da
população atendida, implicando uma mudança da sensibilidade coletiva.
Um conjunto de produções artísticas se consolidou por meio de projetos
autônomos ou de iniciativas dentro dos serviços de saúde mental que ambicionavam
promover a ampliação da circulação social e o exercício da cidadania para uma
população há muito desprovida de seus direitos fundamentais. Logo, processos que
usavam a arte como recurso terapêutico deram espaço a projetos ancorados na
construção de estratégias de saída das instituições de cuidado para integrar o
circuito cultural das cidades.
Uma política pautada no reconhecimento da cultura como direito social básico
e na valorização da diversidade cultural como patrimônio orientaram ações, em
2007, do Ministério da Cultura (MinC) em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz
FIOCRUZ. Ambos os orgãos organizaram uma oficina para a construção de uma
política de fomento a produções na interface entre a arte e a loucura que culmina,
em 2009, no Edital de premiação “Loucos pela Diversidade” que mapeou produções
por todo o território nacional, sendo a maioria das experiências oriundas de pessoas
físicas e grupos autônomos (AMARANTE et. al., 2012).
Na maior parte dos Centros de Atenção Psicossocial, o recurso artístico ainda
é utilizado predominantemente com fins terapêuticos e de modo superficial no que
tange ao entendimento dessas experiências como produtoras de linguagens e à sua
valorização estética. Ainda assim, muitos dos projetos e propostas, especificamente
aqueles oriundos de iniciativas autônomas, instauram uma experiência em arte
numa relação crítica e dialógica como funcionamento do Sistema de Arte, criando
formas paralelas e mais democráticas de difusão (LIMA, 2009; BARBOSA, 2010;
GALVANESE; NASCIMENTO; D’OLIVEIRA, 2013).
A memória dessas produções também se constrói por meio de diferentes
discursos presentes nos textos que descrevem as experiências dos projetos na
interface da arte e da saúde mental. Pode ser compreendida como tessitura de
afetos e expectativas diante do devir e utilizada como foco de resistência e
instrumento de transformação social (GONDAR, 2015). Nessa interface, o campo da
memória social foi sendo construído inicialmente sob uma perspectiva de
preservação de uma memória autêntica com base em quadros sociais estáveis e
valorizada em sua dimensão instituída formada por abstrações gerais,

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