A construção histórica do 'excedente' de trabalhadores e a institucionalidade das políticas sociais, no Brasil

AutorAnete B. L. Ivo
CargoUniversidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil
Páginas267-292
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 267-292, maio/ago. 2022 | ISSN 2447-861X
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO “EXCEDENTE”
1
DE
TRABALHADORES E A INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS
SOCIAIS, NO BRASIL
The historical construction of the “surplus” workers and the institutionality of
social policies in Brazil
Anete B. L. Ivo
Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil
Informações do artigo
Recebido em 05/07/2022
Aceito em 14/08/2022
doi>: https://doi.org/10.25247/2447-861X.2021.n256.p267-292
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IVO, Anete B. L. A construção histórica do “excedente
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de trabalhadores e a institucionalidade das políticas
sociais, no Brasil. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de
Humanidades. Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 267-
292, maio/ago. 2022. DOI: https://doi.org/10.25247/2447-
861X.2021.n256.p267-292
Resumo
Esse artigo recompõe as condições históricas de iniquidade da estrutura
social brasileira e demons tra como as reformas antidemocráticas do
presente agravam as condições de reprodução social de inúmer os
trabalhadores e suas famílias, num patamar de vulnerabilidade social
crescente. Analisa como o padrão histórico, hierarquizado e autoritário,
da sociedade colonial reproduz uma inércia de segmentação social no
usufruto dos direitos, o que demonstra que as desigualdades sociais são
também resultado da política. Apresenta os ciclos mais recente s da
agenda política pública brasileira, de forma a entender como as reformas
sociais antidemocráticas rompem com o liberalismo social prevalecente,
agravando o padrão das desigualdades sociais, no País. Essa ampliação
das desiguald ades resulta de uma violência institucional do Estado na
desconstrução dos pilares civilizatórios da cidadania social, no Brasil, em
favor de uma remercadorização radical da sociedade.
Palavras-Chave: desigualdade social. I deologia colonial. Questão social.
Proteção social. Ciclos de reprodução da política.
Abstract
This article recomposes the historical conditions of ine quality in the
Brazilian social structure and demonstrates how the anti-democratic
reforms of the present worsen the condit ions of social reproduct ion of
countless wo rkers and their families, at a level of growing social
vulnerability. It analyzes how the historical, hierarchical and authoritarian
pattern of colonial society reproduces an inertia of social segmentation in
the enjoyment of rights, which demonstrates that social inequalities are
also the result of politics. It presents the most recent cyc les of the
Brazilian public political agenda, in order to understand how anti-
democratic social reforms break with the prevailing social liberalism,
aggravating the pattern of social inequalities in the country. This
expansion of inequalities results from institutional violence by the State
in the deconstruction of the civilizing pillars of social citizenship in Brazil,
in favor of a radical re-commodification of society.
Keywords: social inequality. Colonial ideology. Social issues. Social
protection. Policy reproduction cycles.
1
Essa noção se refere à uma população d e trabalhadores considerada, desde a época colonial, como
relativamente supérflua e não incorporada aos padrões essenciais de reprodução capitalistas e sobrevivendo
com salários e rendas extremamente rebaixados. A heterogeneidade da estrutura produtiva dos países e regiões
periféricas da América Latina se reflete em uma superabundân cia da força de trabalho. O resultado é o
desemprego estrutural e o baixo nível de salários médios ou de renda per capita. Essa massa de trabalhadores
extremamente precariza dos e empobrecidos resulta de uma condição estrutural e estruturante das relações
capitalistas e da forma como se reproduziram as assimetrias de classes em suas dimensões econ ômicas,
políticas e culturais, no Brasil e não de hábitos e ou atributos pessoais negativos desses trabalhadores.
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, v. 47, n. 256, p. 267-292, maio/ago. 2022.
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A construção histórica do “excedente1” de trabalhadores e a institucionalidade das políticas sociais... | Anete B. L. Ivo
INTRODUÇÃO
A desigualdade de renda é um fenômen o estrutural que, no pr esente, se ampliou
consideravelmente na ordem mundial. Ela diz respeito à iniquidade de acesso de grupos sociais às
condições básicas de vida, como renda, educação, saúde, habitação e cultura, promotoras de bem-
estar. Em termos estatísticos e de acordo com o World Inequality Report 2018 - WIR
3
os 1% mais ricos
da população mundial abarcaram 27% do crescimento da renda no mundo, desde 1980, enquanto os
50% mais pobres reduziram a sua participação na renda mundial, ficando apenas com 12% dessa
renda global. Essa tendência de concentração da renda afeta de forma severa os grupos de pessoas
mais vulneráveis
4
, e compromete o princípio da equidade
5
, inerente aos regimes democráticos e à
condição de dignidade da pessoa humana.
No Brasil, o padrão histórico e estrutural das desigualdades sociais, apresenta uma inércia
cio-histórica de reprodução de uma imensa população de trabalhadores empobrecidos, que se
reproduz, com suas famílias, nos limites mínimos da sobrevivência e em formas brutais de
precariedade das condições de vida e trabalho, extremamente rebaixadas. Em que pesem os avanços
na institucionalização de direitos básicos sociais universais, especialmente na Constituição de 1988, e
o incremento de diversas políticas de reconhecimento dos direitos sociais de grandes maiorias de
grupos sociais desfavorecidos
6
, o Brasil é o país que mais concentra renda no 1% da pirâmide, no
mundo.
Segundo dados combinados das pesquisas domiciliares, contas nacionais e declarações de
imposto de renda, esse 1% super rico brasileiro (cerca de 1,4 milhões de adultos) captura 28,3% dos
rendimentos brutos totais e recebe individualmente, em média, R$ 106,3 mil por mês pelo conjunto
de todas as suas rendas (segundo valores de 2015, atualizado n a base do WID - World Inequality
Database)
7
. Em termos relativos, os 50% mais pobres (71,2 milhões de pessoas) ficam com 13,9% do
3
Disponível em http://wir2018.wid.world. Acesso em 17.09.2019.
4
Entendidas como aquelas em situações desfavoráveis em termos de renda, esco laridade, moradia e de
privação de direitos.
5
Equidade considerada como uma forma justa de aplicação do Direito, na qual critérios de igualdade são
processados pela justiça, na forma de regras e leis. Es se princípio considera que lugares e pessoas diferentes
demandam soluções específicas de forma a reduzir a condição de grupos em situa ções de vulnerabilidade mais
severa que a lei geral não alcança.
6
Ao lado das políticas de distribuição de renda também foram implementadas, no Brasil, políticas de reparação
e ações afirmativas, de rec onhecimento dos direitos civis, políticos, s ociais e econômicos de minorias sociais e
culturais. Ess as políticas buscam corrigir as desigualdad es socioeconômicas raciais e de gênero, por
mecanismos institucionais como as políticas de cotas para mulheres e para população afrodescendente,
sustentadas em normativas do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas .
7
A responsabilidade da análise dos dados para o Brasil, no WID, foi de Marc Morgan economista da Paris School
of Economics & World Inequality Lab.

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