O controle das mudanças constitucionais

AutorJosé Adércio Leite Sampaio
Ocupação do AutorMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor do Curso de Graduação e Pós-Graduação da PUC-MG. Procurador da República
Páginas385-421
C
APÍTULO
III
O CONTROLE
DAS MUDANÇAS
CONSTITUCIONAIS
O otimismo legalista dos revolucionários modernos inspirara a
idéia de uma Constituição como a super-lei imutável de toda comu-
nidade política que desejasse garantir, a si e às gerações futuras, o
estatuto das liberdades. Uma Constituição como idéia parecia, aos
seus olhos, uma conquista irreversível. No entanto, a imutabilidade
não poderia implicar a sua petrificação, reconhecendo-se ao povo
ou à nação o direito de não apenas adotar uma Constituição, mas
também de mantê-la e aperfeiçoá-la conforme a sua conveniência e
necessidade. Jean-Jacques Rousseau escrevera que seria
“contrário à natureza do corpo político imporem-se leis que não pu-
desse revogar; não sendo nem contra a natureza nem contra a ra-
zão que não possa revogar essas leis senão com a mesma solenida-
de com a que as estabeleceu”.1
O abade Siéyès falava de uma vontade do povo como um
querer sempre vivo, de modo que “uma nação não pode nem alie-
1ROUSSEAU. Considération sur le Gouvernment de Pologne et sur Réformation Projetée
en Avril 1772, p. 278.
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nar, nem proibir o direito de querer; e qualquer que seja a sua
vontade, não pode perder o direito de mudá-la no momento em
que seu interesse o exija”.
2
E para não ficarmos apenas na Europa,
lembremos das lições de Hamilton, segundo as quais “toda emen-
da à Constituição, uma vez estabelecida esta, formará uma só pro-
posição e poderá ser proposta isoladamente. (...). A vontade do
número requerido decidirá imediatamente o problema”.
3
A Constituição norte-americana consagrou essa doutrina em
seu artigo V:
“O Congresso poderá propor emendas a esta Constituição, sempre
que as duas terceiras partes de ambas câmaras as julguem neces-
sárias; ou, a pedido das legislaturas das duas terceiras partes dos
estados, convocará uma convenção para propor emendas, as quais,
em quaisquer dos dois casos, serão válidas para todos os fins e pro-
pósitos, como parte desta Constituição, quando as ratifiquem as
legislaturas das três quartas partes de todos os estados, ou por con-
venções celebradas nas três quartas partes dos mesmos, pois o
Congresso poderá propor um ou outro modo de ratificação.”
Os revolucionários franceses também prestaram suas homena-
gens à vontade soberana do povo, com a afirmação pelo artigo 1.º, § 1.º,
do Título VII da Constituição de 1791 de que “a Assembléia Nacio-
nal Constituinte declara que a nação tem o direito imprescritível de
mudar sua Constituição”. No entanto, prescrevia um processo muito
complicado para se proceder à mudança. O artigo 2.º dizia que “se
três legislaturas consecutivas emit[ir]em um voto uniforme em favor
da modificação de algum artigo constitucional, haverá lugar para a
revisão solicitada”. As exigências não paravam por aí. A quarta
legislatura deveria integrar-se com o dobro do número de membros
das legislaturas ordinárias, não podendo contar com Deputados da
legislatura anterior. Essa Assembléia teria por função exclusiva a re-
forma da Constituição, de forma que, concluída esta, os membros
adicionais cessariam em suas funções, retornando a Assembléia à sua
atividade legislativa. No mesmo passo, a Constituição de 1795 previa
a possibilidade de eleição de uma Assembléia especial e exclusiva de
2SIÉYÈS. Che cos’è il Terzo Stato?, p. 257.
3HAMILTON. The Federalist Papers n. 85, p. 525.
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O CONTROLE DAS MUDANÇAS CONSTITUCIONAIS
Revisão nove anos após a aprovação da proposta, que deveria ser
instalada em lugar distante da sede dos Corpos Legislativos, veda-
da a participação dos membros desses Corpos, e cujos trabalhos
haveriam de ser concluídos em três meses, durante os quais seus
membros não poderiam sequer participar de qualquer cerimônia
pública (arts. 336 a 350). Esse procedimento gravoso, com a exi-
gência de mais de uma legislatura para aprovar a reforma pretendi-
da do texto constitucional originário, foi também seguido pela Cons-
tituição espanhola de 1812. Os suíços, à diferença dos norte-ameri-
canos, franceses e espanhóis, ocuparam-se em dar especial ênfase
ao princípio da soberania do povo, reconhecendo a iniciativa popu-
lar para apresentação de proposta de emenda, bem como da neces-
sidade de um referendum decisório ao final.
A nossa primeira Constituição continha uma parte rígida – limi-
tes e atribuições dos Poderes Políticos e os direitos políticos e individuais
dos cidadãos – e outra flexível, que podia ser alterada pelas legislaturas
ordinárias (art. 178). Relativamente à primeira parte, impunham-se
vários passos. A começar pelo interregno de quatro anos, depois de
jurada a Constituição, para apresentação de proposição de emenda
pela terça parte dos membros da Câmara dos Deputados. Essa pro-
posição teria de ser lida por três vezes, com intervalos de seis dias
uma da outra, após o que a Câmara deliberaria se poderia ser admitida
à discussão. Em caso afirmativo, seria expedida a lei em forma
ordinária, convocando os eleitores para a seguinte legislatura com
faculdade especial para promover as alterações ou reformas. Nesta
legislatura e na primeira sessão, seria a matéria proposta e discutida
e, em sendo aprovada, juntar-se-ia à Constituição (arts. 174 a 177).
Todo esse rigor tinha como finalidade assegurar o valor supremo
da Constituição, fixando-lhe a indispensável “rigidez”. Todavia, o
que significaria essa rigidez?
Correntemente, tem-se caracterizado a rigidez constitucional
pela impossibilidade de revogação de uma norma constitucional por
uma simples lei ordinária, exigindo-se, bem ao contrário, um pro-
cedimento legislativo muito mais agravado e complexo. Não basta,
contudo, a simples previsão desse procedimento, impõe-se que to-
das as transformações constitucionais atendam ao seu roteiro. Es-
sas prescrições permitem que, ao um só tempo, as Constituições
sejam perenes, enquanto as suas normas sejam transitórias. Por
isso se diz que o sistema de rigidez deve equilibrar tanto a garantia
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