Controle jurisdicional de políticas públicas

AutorSabrina Nasser de Carvalho
Páginas55-121
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CONTROLE JURISDICIONAL
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
2.1 DO ESTADO LIBERAL AO ESTADO CONSTITUCIONAL DE
DIREITO
O debate sobre os conceitos, as premissas, os limites e os instru-
mentos processuais que envolvem a temática sobre o controle jurisdi-
cional de políticas públicas exige uma análise preliminar a respeito do
desenvolvimento do modelo do Estado Liberal até o estágio atual e,
ainda, uma abordagem sobre a evolução da função social e política
exercida pelo Poder Judiciário.
Isso porque a política pública é um fenômeno recente, fruto de
um determinado estágio de desenvolvimento da sociedade,79 quando ao
Estado foi facultada a intervenção direta no comportamento político e
social, com vistas à persecução do interesse público.
Do mesmo modo, a natureza e os limites da atividade jurisdicio-
nal são condicionados pela ideologia perfilhada em cada período da
79 DERANI, Cristiane. “Política pública e a norma política”. In: BUCCI, Maria Paula
Dallari (org.). Políticas públicas: reflexos sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 131.
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SABRINA NASSER DE CARVALHO
história, partindo-se de uma atuação limitada à racionalidade mecânica
e circunscrita à letra do Direito posto até o modelo contemporâneo, que
subjaz na busca da eticidade inserta em normas escritas por meio de
valores e finalidades.
O escorço histórico inicia-se com o modelo político e jurídico
vigente no Estado Liberal. Os valores consagrados pela ética do Estado
burguês primavam pela proteção do indivíduo contra os desmandos
advindos da ingerência do Poder Público visando a infirmar o poder
autocrático que caracterizava o Estado absolutista.
O espectro da atuação das instituições sociais e estatais estava
condicionado ao respeito da liberdade, com vistas à promoção da maior
vantagem individual do cidadão. Em razão disso, a atividade governa-
mental não era regida por uma orientação finalística e não estava com-
prometida com a proteção de fins sociais, mas, ao contrário, mantinha
uma atuação mínima de modo a observar estritamente a liberdade do
indivíduo.
A atividade jurisdicional seguia esta mesma linha. O Poder Judi-
ciário julgava apenas conflitos entre sujeitos individuais,80 restringindo
a sua esfera de atuação à função corretiva, por meio do reconhecimen-
to da violação a direitos individuais dos jurisdicionados e ao retorno ao
status quo.81 A igualdade formal e a segurança jurídica serviam de vetores
que direcionavam a atividade julgadora.
Com o escopo de abandonar os resquícios do Ancien Régime, o
Poder Legislativo passa a ser o ator protagonista do Estado Liberal,
tomando as rédeas do controle da ação do Estado. Para o cumprimen-
to dos intentos liberais, a submissão irrestrita à lei era instrumento
valoroso de controle político e social, pois garantia a curvatura dos
80 SALLES, Carlos Alberto de. “Políticas públicas e processo: a questão da legitimidade
nas ações coletivas”. In: BUCCI, Maria Paula Dallari (org.). Políticas públicas: reflexões
sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 178.
81 ZANETI Jr., Hermes. “A teoria da separação de poderes e o estado democrático
constitucional”. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo (coords.). O
controle jurisdicional de políticas públicas. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 4.
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PROCESSOS COLETIVOS E POLÍTICAS PÚBLICAS
Poderes Executivo e Judiciário às determinações de interesse do Poder
Legislativo.82
Festejava-se a obediência ao princípio da legalidade estrita, enten-
dida como a emanação de um poder objetivado, livre da vontade instá-
vel da autoridade e protetora da tutela das liberdades dos indivíduos.83
Coerente com os ideais iluministas, surge o fenômeno da codificação
das leis,84 que tinha como alvo a sistematização racional do Direito, con-
templado em uma só fonte legislativa. O fenômeno da codificação visava
a extirpar as possíveis incertezas e os privilégios do ordenamento jurídico
e ainda trazia consigo a ilusão de que seus dispositivos contemplavam em
seu corpo todas as respostas para a solução dos conflitos jurídicos.85
O campo da hermenêutica era marcado pelo dogma do positivis-
mo jurídico estrito, ilidindo qualquer possibilidade de abertura à inser-
ção de elementos valorativos na descoberta do conteúdo da norma ju-
rídica. Fiel às características do modelo da dogmática jurídica, exige-se
neste momento uma rígida separação entre o Direito, Política e Econo-
mia.86 O escopo era garantir a neutralidade técnica da lei, inviabilizando
qualquer imbricação entre o Direito e os reflexos sociais e políticos
produzidos perante a sociedade.87
82 RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 67.
83 MEDAUAR, Odete. O direito administrativo em evolução. São Paulo: RT, 2003, p. 114.
84 O Código mais representativo do Estado Liberal é o Código Civil francês de 1804,
destacando-se pelo seu rigor técnico e pela precisão normativa. Elaborado no regime
napoleônico, o seu objetivo era afastar as premissas do Antigo Regime, mormente as
incertezas, os privilégios e a ausência de racionalidade dos atos estatais.
85 NOJIRI, Sergio. A interpretação judicial do direito. São Paulo: RT, 2005, pp. 36-39.
86 CAMPILONGO, Celso Fernandes. “O trabalhador e o direito à saúde: a eficácia
dos direitos sociais e o discurso neoliberal”. In: DI GIORGI, Beatriz; CAMPILONGO,
Celso Fernandes; PIOVESAN, Flávia (coords.). Direito, cidadania e justiça: ensaio sobre
lógica, interpretação, teoria sociológica e filosofia jurídicas. São Paulo: RT, 1995, p. 129.
87 “Em síntese, o positivismo torna a ciência jurídica uma ciência unidisciplinar, fechada
em si mesma, admiradora exclusivamente de sua própria imagem”. (TAVARES, André
Ramos. “Abertura epistêmica do direito constitucional”. In: NOVELINO, Marcelo

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