O controle social e o consumidor de serviços públicos

AutorProf. Juarez Freitas
CargoProfessor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFRGS, do Mestrado da PUC/RS e da Escola Superior da Magistratura-AJURIS
Páginas1-11

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1. Introdução

O controle dos atos administrativos deveria funcionar, substancialmente, como processo único, tendo como grande estímulo a acentuação do controle social e eticamente engajado. Avulta, sobremaneira, no exercício deste, a luta pela eficácia social do princípio da proteção do consumidor de serviços públicos, que implica, antes de mais, o reconhecimento técnico e fático da vulnerabilidade dos usuários. Em outras palavras, a compreensão dos diplomas atuais e, sobretudo, daqueles exigidos pela Emenda Constitucional 19/98 (ao alterar o parágrafo terceiro do art.37 da Constituição, ordenando que lei discipline as formas de participação do usuário, bem como ao determinar (em seu art. 27) que o Congresso elabore lei de defesa do usuário de serviços públicos) deve radicar na defesa positivadora do citado princípio, superpondo-o, se for o caso, às regras e aos ajustes contratuais.Page 2

Cumpre, desde já, difundir e aplicar as normas protetivas do Código de Defesa do Consumidor, a par da esparsa legislação vigente, tendo claro o primado da defesa do usuário, respeitado como figura central no estudo das relações de consumo de serviços atinentes ao Poder Público, ainda aquelas entretecidas por delegação, nos casos de execução indireta. Além de sobrepassar o fragmentarismo normativo vigente, urge fazer com que a dignidade da pessoa do consumidor seja o prisma hierarquizado como prioritário em matéria de controle, por se tratar, de modo insofismável, de imperativa derivação do princípio da intervenção essencial do Estado, seja em virtude do assento constitucional expresso e abrangente (CF, arts. 5º , XXXII, 170 e 175), seja por força da larga, embora dispersa e precária, regência infraconstitucional (v.g., Lei 8.987/95, art.7º ; Lei 8.078/90, art.6º , X; Lei 9.472, art.3º e Lei 9.478/97, art. 1º , III), seja à mercê da intrínseca nota de essencialidade de tais serviços, os quais, por definição, mesmo os supostamente contingentes, assumem tons dimanantes do caráter irrenunciável de sua titularidade sempre pertencente ao Poder Público, nada obstante transferível a execução. Para robustecer tal visada publicista das relações de consumo e salientar que o controle social efetuado a favor dos usuários não precisa aguardar a vinda a lume de novos diplomas, apesar da notória urgência dos mesmos (reconhecida pelo constituinte derivado), é que se endereça o presente estudo.

2. O conceito de relações de consumo de serviços públicos, o atual sistema de proteção e a urgência de um novo regime fomentador da cultura participativa

No seu todo, as relações jurídico-administrativas são as que se orientam pelo sistema de princípios, normas e valores regentes da Administração Pública, de molde a respeitar os direitos e garantias fundamentais dos administrados e a resguardar a igualdade, a despeito de diferenças hierárquico-funcionais. Nesta acepção ampliada, figuram como espécies as relações de consumo dos serviços públicos, vale dizer, aquelas que, regidas por normas de indisponível ordem pública e de interesse social, deixam-se entretecer pela Administração Pública ou delegados seus e toda pessoa física ou jurídica que utilize os serviços como destinatário final, mediante remuneração, exceto as decorrentes das relações de caráter trabalhista.1Como mencionado, um dos referenciais para a intelecção adequada de tais relações radica no princípio da vulnerabilidade do consumidor de serviços públicos (explicitado pelo CDC, art. 4º ), que, para esta hipótese, funciona como especificação do princípio constitucional da responsabilidade objetiva do Estado, nos termos da teoria do risco2.

Outro aspecto digno de nota, de plano, reside na imprescindibilidade de compatibilização de múltiplos e aparentemente díspares princípios constitucionais, já os diretamente envolvidos com o DireitoPage 3 Administrativo, já as diretrizes supremas disciplinadoras da ordem econômica (CF, art. 170), estas últimas, por certo, parcialmente incidentes em face das relações de administração, visando a obtenção de serviços públicos prestados de modo qualificado e com justo equilíbrio (CDC, art. 4º , III e IV). De outra parte, o sistema, ao exigir que se perceba o consumidor de serviços públicos ocupando a polaridade havida como mais débil nas relações de consumo, não pretende que, em homenagem à exacerbada idéia de assimetria, perdurem diferenças inaceitáveis, ao menos sem compensações. Vai daí a necessidade de que se efetue a inversão do ônus da prova em prol de tal consumidor, sem se cogitar, neste caso, de hipossuficiência ou de verossimilhança de alegação, uma vez que, se se tratar de pessoa jurídica de direito público ou de pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, vale o princípio consagrado na Lei Maior, art. 37, par. 6º e em diplomas infraconstitucionais sintonizados com tal comando consagrador da teoria do risco não-integral (v.g., o previsto na Lei 8.987/95, art. 25 3). A única exceção refere-se, salvo melhor juízo, às pessoas físicas permissionárias de serviços públicos, pois a estas, sim, aplica-se, na íntegra, o disposto no referido dispositivo do art. 6º do CDC, vale dizer, neste caso apenas haverá a inversão do ônus da prova (sublinhe-se: mero critério de julgamento), se verossímil a alegação e quando, perante este peculiar permissionário, o consumidor se apresentar hipossuficiente, consoante regras ordinárias da experiência. No mais, a responsabilidade, por força da vontade constituinte originária, será objetiva e, pois, a vulnerabilidade restará presumida. 4

Em homenagem à semelhante postura interpretativa (que merece ser corroborada de "lege ferenda"), força ter nítido o direito de obter a plena efetividade da prevenção - não apenas da reparação - dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos (CDC, art. 6º , VI). Dito de outro modo, não precisa haver o dano para que haja o direito de ação e para que se considere invertido o ônus da prova. A simples prestação inadequada do serviço já se mostra ameaça suficiente, que pode e deve ser impugnada, com a devida inversão. De seu turno, se consumado o dano, o usuário deverá, na integralidade, obter a reparação, para tanto admitida a cumulação das reparações patrimoniais e morais, naturalmente se se consubstanciar a mesma origem danosa, viabilizando-se o manejo amplo, pelo consumidor dos serviços públicos, não apenas da ação popular em que pode, v.g., pleitear sentença de natureza determinativa5), como também do vasto plexo de ações 6 disponíveis, nos termos do art. 83 do CDC, sempre no intuito de alcançar pronta e eficaz tutela, inclusive, dentro de precisos limites, pleiteando a antecipação da tutela ou a tutela específica, com a eventual imposição de "astreintes." 7

Na mesma linha, ao se interpretarem as múltiplas normas de ordem pública envolvendo o usuário de serviços públicos, impõe-se considerar, em contrato administrativo de delegação para execução de serviços públicos, como rigorosamente nula (CDC, arts.51, XI e 6º , VIII) a cláusula quePage 4 permite a eleição de foro em benefício do fornecedor dos serviços, em detrimento dos consumidores. Ressalve-se, contudo, que tal primado não precisa conduzir a unilateralismos contrários ao interesse público, nem se deve aplicar sem exceção ou de modo a excluir a eficácia de outros princípios, razão pela qual não se haverá de admitir, por exemplo, em plenitude literal, a regra de solidariedade do parágrafo único do art. do CDC às relações de consumo de serviços públicos, pois se é certo que a mencionada titularidade dos serviços pertence ao Poder Público, sua...

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