Corpo e conhecimento em Merleau-Ponty

AutorFabio di Clemente
CargoDoutor em Filosofia pela Universidade de Urbino (Itália)
Páginas1-46
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.5, p. 1-46, jul./dez. 2008.
1
CORPO E CONHECIMENTO EM MERLEAU-PONTY
BODY AND KNOWLEDGE IN MERLEAU-PONTY
CUERPO Y CONOCIMIENTO EN MERLEAU-PONTY
Fabio di Clemente*
Resumo
O estudo enfoca o problema do conhecimento, analisando-o através de dois pontos: o
vínculo teorético do nível perceptivo e as suas conseqüências para a relação entre a
tradição filosófica e a reflexão sobre a ciência. O primeiro ponto mostra a função original
do corpo, retomando a fenomenologia de Merleau-Ponty; o segundo ponto destaca e
desenvolve o sentido dessa reabilitação do corpo frente à teoria e prática da pesquisa
científica. O resultado que se busca evidenciar é duplo: requalificar o peso teorético do
corpo e, com ele, as noções filosóficas tradicionais, como aquelas de subjetividade e de
fundamento; e justificar, a esse nível, a necessidade da interação entre a teoria filosófica
e a teoria e prática científicas.
Palavras- chave: Corpo. Conhecimento. Fenomenologia. Ontologia.
Abstract
The work is focused on the problem of knowledge, analyzing it through two main points:
the theoretical bond contained at perception level, and the relapse of the same bond
inside the relation between the philosophical tradition and the reflection on science. The
first point shows the original function of the body, starting from Merleau-Ponty’s
phenomenology; the second point emphasizes and develops the sense of this
* Doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino (Itália), na qual foi professor de História da Tradição
dos Povos. Na mesma universidade italiana, foi diretor didático do Mestrado em História do Pensamento
Filosófico, Político e Pedagógico. Atualmente, é bolsista de Pós-doutorado pelo CNPq. Atua
principalmente nos seguintes temas: corpo, percepção, linguagem, teoria do conhecimento. Entre as suas
publicações: “Tra filosofia e scienza. Le rivoluzioni della conoscenza e il ritorno al problema della
percezione”. In: “Rivoluzione”, InOltre, n. 11, Milano: Jaca Book, 2008, pp. 66-77. Corporeità, passioni e
valori. Per una fenomenologia della paura. Etic@, vol. 6, num. 1, Florianópolis, 2007, pp. 123-137.
Fenomenologia e ontologia. Corpo ed Essere in Merleau-Ponty. In: Di Clemente, F. et alii. Tra Dilthey e
Habermas.Esercizi di pensiero su filosofia e scienze umane. Perugia: Morlacchi, 2006, pp. 351-522. La
perception et l’histoire dans la pensée de Maurice Merleau-Ponty. In: Losurdo, D.; Tosel, A. (éds). L’ideé
d’époque historique. Frankfurt am Main: Peter Lang, Band 12, 2004, pp. 419-433. E-mail: fdicle@libero.it
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.5, p. 1-46, jul./dez. 2008.
2
rehabilitation of the body inside the theory and practice of scientific research. The result
that we try to evidence is a twofold issue: to re-qualify the theoretical valency of the body
and, with it, philosophical notions like ‘subjectivity’ and ‘foundation’ as well as to justify,
at such level, the need of an interaction between the philosophical theory and the
scientific theory and practice.
Key-words: Body. Knowledge. Phenomenology. Ontology.
Resumen
El estudio foca el problema del conocimiento bajo dos puntos de análisis: el vínculo
teorético del nivel perceptivo y las consecuencias para la relación entre la tradición
filosófica y la reflexión sobre la ciencia. El primer punto muestra a la función original del
cuerpo, retomando la fenomenologia de Merleau-Ponty; el segundo punto destaca y
desenvuelve el sentido de esta rehabilitación del cuerpo frente a la teoría y practica de la
pesquisa científica. El resultado que se busca evidenciar es doble: recalificar el peso
teorético del cuerpo y con el las nociones filosóficas tradicionales, como aquellas de
subjetividad y de fundamento; y justificar, a este nivel, la necesidad de interacción entre
la teoría filosófica y la teoría e práctica científicas.
Palabras-clave: Cuerpo. Conocimiento. Fenomenologia. Ontología.
1 CORPO E CONHECIMENTO EM MERLEAU-PONTY1
1.1 A CRISE DA NOÇÃO DE SUJEITO E A DUPLA ORIGEM DO
CONHECIMENTO ENTRE FILOSOFIA E EPISTEMOLOGIA
A partir dos últimos vinte anos do século XIX, as mudanças do modelo físico-
matemático e as abordagens experimentais das dinâmicas psíquicas são
acompanhadas pelo papel decisivo das ‘ciências da vida’. Em particular, entre estas
últimas, a biologia se descobre como ciência cheia de implicações e aplicações. Por um
lado, isso testemunhava a importância da interação entre filosofia e ciência; por outro, o
estatuto epistemológico das ciências continuava sendo eminentemente auto-referencial
1 Esse trabalho é o desenvolvimento de uma recente publicação: Di Clemente, F. “Tra filosofia e scienza.
Le rivoluzioni della conoscenza e il ritorno al problema della percezione”. In:“Rivoluzione”, InOltre, n. 11,
Milano: Jaca Book, 2008, pp. 66-77. Precisamos notar, como pode ser observado, que referimos sempre
as traduções italianas dos textos dos autores citados, embora, em vários casos, já existam traduções
R. Inter. Interdisc. INTERthesis, Florianópolis, v.5, p. 1-46, jul./dez. 2008.
3
na legitimação dos modelos e na avaliação dos resultados conseguidos2. Dessa forma,
persistiam os problemas relativos à relação entre o campo tradicional da filosofia e o
desenvolvimento da ciência.
A reação de boa parte da cultura filosófica (mas também científica) na Europa da
primeira metade do século XX contra a matriz positivista do saber aumentou a
incompreensão entre filosofia e ciência, ignorando a função crítica do positivismo como
“movimento” (de Comte até o “positivismo crítico” de Mach), ou seja, o reconhecimento
da profunda interação entre a evolução do pensamento científico e a do conhecimento
filosófico3. Em geral, contra a idéia de um ‘fracasso’ da ciência, não se podia ignorar que
sempre houve uma profunda relação dentro dos próprios contrastes entre filosofia e
ciência; é uma relação que se manifesta tanto entre o campo tradicional da filosofia e os
campos específicos das várias ciências, quanto entre a reflexão filosófica sobre a
ciência e a própria prática científica.
Desde Aristóteles até o nascimento da ciência moderna, tais contrastes com a
filosofia implicaram sempre uma interação com as ciências, com as pesquisas sobre a
física, a biologia, a astronomia, etc. Paradigmaticamente, a teoria do conhecimento em
um autor como Kant se compreende também em virtude do entendimento que ele teve
da física, como aquela de Galileu e de Newton. E, paralelamente, não se pode entender
a crítica da tese kantiana dos juízos sintéticos a priori, operada pelo empirismo lógico,
sem a mudança das pesquisas científicas: pensamos, por exemplo, na geometria não-
euclidiana, na substituição da física de Newton pela física relativista de Einstein e pela
mecânica quântica. Todavia, apesar de tal desenvolvimento do saber científico, que
ajudou a dilatar a idéia de experiência tanto da ciência clássica quanto da tradição
filosófica antiga e moderna (pensamos, por exemplo, na crítica da ‘ciência absoluta’), e
frente à formação da filosofia da ciência, persistiu – entre a segunda metade do século
XIX e a primeira metade do século seguinte – uma profunda incompreensão acerca da
possibilidade de uma fecunda interação entre a tradição filosófica e o desenvolvimento
da teoria e prática científicas.
No século XX, a crise da redução do mundo humano ao modelo único da ciência
físico-matemática acabou sendo um dos fatores que influenciaram a queda do “otimismo
portuguesas.
2 Cf.Poggi, S. I sistemi dell´esperienza. Bologna: Il Mulino, 1977, pp. 186-187.
3 Ibidem, pp. 186, 208.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT