Corpos femininos sob controle a criminalização do aborto no Brasil

AutorSimã Catarina de Lima Pinto
CargoDoutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestranda em Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Brasil
Páginas223-243
223
GÊNERO | Niterói | v. 22 | n. 2 | p. 223-244 | 1. sem 2022
ARTIGO DE TEM A LIVRE
CORPOS FEMININOS SOB CONTROLE: A CRIMINALIZAÇÃO DO
ABORTO NO BRASIL1
Simã Catarina de Lima Pinto2
Resumo: O objetivo deste artigo é fazer uma análise criminológica do controle
social do corpo das mulheres no Brasil, relativamente à criminalização do
aborto. O atual contexto jurídico e sociopolítico nega às mulheres o direito
de decidirem sobre seu próprio corpo e sua própria vida, o que as coloca
em constante risco de morte e de danos à sua integridade física. A partir da
exposição dessa situação, a análise criminológica aponta para um controle social
de seus corpos por meio de um poder disciplinar e um biopoder que operam,
respectivamente, como mecanismos de docilização e regulamentação.
Palavras-chave: Controle social; Mulheres; Criminalização do aborto.
Abstract: The paper carries out a criminological analysis on the social control
of women’s body in Brazil regarding the issue of the criminalization of
abortion. The current legal and sociopolitical context denies women the right
to decide about their own bodies and their own lives, putting them at constant
risk of death and damage to their physical integrity. Based on the discussion
of this scenario, the criminological analysis points to a social control of their
bodies through a disciplinary power and a biopower that operate, respectively,
asdocilization and regulation mechanisms.
Keywords: Social control; Women; Criminalization of abor tion.
1 Introdução
O posicionamento diferente de mulheres e homens na sociedade
impõe experiências divergentes para ambos e um tratamento diferen-
ciado do primeiro grupo em relação aos seus direitos e, na prática, deveres.
1 Esta pesquisa foi parcialmente financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes).
2 Doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense. Mestranda em Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Brasil. E-mail: simacatarina@id.u.br.
Orcid: 0000-0003-0913-7639
223
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-
NãoComercial 4.0 Internacional.
224GÊNERO | Niterói | v. 22 | n. 2 | p. 223-244 | 1. sem 2022
Nessesentido, o direito e as instituições mantêm as mulheres ainda sub-
metidas ao cumprimento de papéis sociais que atentam contra a sua auto-
nomia e independência, tal como é o caso da manutenção da prática do
aborto como crime, mesmo diante de todos os dados que demonstram o
constante risco de morte a que as mulheres precisam se submeter quando
não podem ou simplesmente não querem prosseguir com uma gravidez.
O Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940) prevê que o aborto é per-
mitido somente nos casos de risco de morte para a mulher e quando a gra-
videz decorrer de estupro, desde que haja consentimento da gestante ou de
seu representante legal, caso ela seja incapaz. Além dessas duas exceções à
proibição do aborto, em 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu que nos
casos em que se constata que a gravidez é de feto anencéfalo a interrupção
também é permitida. Fora esses casos, o aborto é criminalizado, e a pena
prevista para a mulher que o provoca ou que permita que outra pessoa lhe
provoque o aborto é a detenção que pode ser de um a três anos.
Entretanto, a despeito disso, o aborto é comum entre as mulheres brasi-
leiras, conforme aponta a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) realizada em
2016 por Diniz, Medeiros e Madeiro (2017). De acordo com essa pesquisa,
realizada em campo em junho de 2016, constatou-se que, das 2.002 mulhe-
res alfabetizadas das áreas urbanas entre 18 e 39 anos que foram entrevis-
tadas, 13% já haviam feito ao menos um aborto, percentual este que cor-
responde a um total de 251 mulheres do total de mulheres entrevistadas.
Uma das conclusões dessa pesquisa é a de que quase uma em cada cinco
mulheres, ao completar 40 anos, já fez um aborto, sendo que em 2015
foram realizados cerca de meio milhão de abortos, dos quais grande parte
foi realizada fora das condições plenas de atenção à saúde, o que coloca o
aborto como “umdos maiores problemas de saúde pública do Brasil” (DINIZ;
MEDEIROS; M ADEIRO, 2017, p.659). Além disso, mostrou-se, ainda, que
os dados relativos à prática do aborto demonstram sua alta magnitude e per-
sistência ao longo dos anos. (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017)
As consequências da criminalização do aborto podem ser fatais para
muitas mulheres, ao se considerar que, além da realização de abortos fora
das condições adequadas de atendimento médico, “as mortes por aborto
no Brasil ocorrem principalmente entre as mulheres pobres, jovens e
negras com baixa escolaridade” (FUSCO; SILVA; ANDREONI, 2012,
p.710), embora o abor to seja “um fenômeno frequente e persistente entre
as mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e
religiões” (DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p.653).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT